26 de janeiro de 2014 |
N° 17685
ARTIGOS - Percival
Puggina*
Castelos de cartas
“Qualquer idiota com mãos firmes
e um par de pulmões funcionando pode construir um castelo de cartas e depois
soprar para derrubá-lo.”
O que aconteceu na boate Kiss
teve muito a ver com as afirmações dessa frase de Stephen King. Aquele local de
lazer era um castelo de cartas à espera do sopro fatal.
Muitos brasileiros que emigram
para o assim dito Primeiro Mundo passam por um período de adaptação. Para uns,
é rápido. Para outros, porém, é um tempo de frustração que se encerra com a
decisão de retornar às origens. Na essência da adaptação ao cotidiano dos
países mais bem organizados, marcando-a de modo decisivo, está a absorção da
seguinte regra geral de convivência: as leis valem para todos e não são
inconsequentemente desrespeitadas. Isso costuma ser um choque. A ordem que
produz costuma ser vista como enfadonha. Para muitos de nós, o respeito às
leis, às regras de condomínio, aos preceitos de um contrato, aos costumes
locais, cria uma atmosfera irrespirável.
No entanto, o Primeiro Mundo é o
que é, em grande parte, por causa disso. Em virtude de tão fundamental norma,
alguns países europeus estão fechando presídios. Há cada vez menos pessoas
dispostas a aceitar os riscos inerentes à tentativa de prosperar no mundo
agindo no submundo. Em virtude dessa regra, certos imigrantes preferem retornar
à zorra nacional, aqui onde as leis são feitas para luzirem no papel e não
para, de fato, sinalizarem as condutas.
No Brasil, o costumeiro
desrespeito às leis, regras e costumes vai construindo castelos de carta em
toda parte. Há castelos institucionais que vemos ser soprados pela falta de
racionalidade, desde dentro e desde fora, comprometendo o funcionamento da
República. Há castelos de carta estatísticos e contábeis, feitos para iludir,
construídos por governos prestidigitadores. Há castelos de carta empresariais,
concebidos para encher o peito de vaidades, de dinheiro os bolsos de alguns, e
de problemas a vida de muitos. Há castelos de carta em políticas públicas, ineficientes
ante a realidade para a qual foram concebidas. E há castelos de carta como a
boate Kiss, à espera do sopro quente da morte, à espera da ignição lançada ao
ar na madrugada de 27 de janeiro de 2013.
Irving D. Yalom, no livro O Dia
em que Nietzsche Chorou, afirma que se subirmos suficientemente alto chegaremos
a um nível a partir do qual as tragédias deixam de parecer trágicas. Ele estava
errado. Não há nível a partir do qual deixe de ser pungente o diuturno
sacrifício humano nas estradas e ruas do país, nos becos das drogas, nos
presídios que o Estado já delegou ao comando dos próprios reclusos, nas filas
de espera do SUS, na indigente atenção à saúde pública, no mau agouro enfermiço
da falta de saneamento básico. Não há altura nem distância a partir das quais o
incêndio da boate Kiss deixe de nos queimar a todos. Ele é uma consequência
doída, ardida na alma, de uma outra tragédia, que quase não vemos: nosso hábito
de dar um jeitinho e driblar a lei. Até que o país nos caia na cabeça.
*ESCRITOR