26 de janeiro de 2014 |
N° 17685
ARTIGOS - Marcos Rolim*
Para nunca mais
As tragédias, para além da dor
que disseminam e do que há de impensável nelas, costumam produzir impactos
políticos e culturais profundos. Diante dos efeitos avassaladores da morte
gratuita em grande escala, a forma como as sociedades se organizam e, mesmo, os
padrões com os quais elas se concebem tendem a se alterar. O terremoto de
Lisboa, de 1755, seguido por um tsunami e por centenas de incêndios, fez com
que a filosofia fosse outra. Até então, as tragédias eram imaginadas como
castigos divinos. O dia 1º de novembro, quando Lisboa foi destruída e dezenas
de milhares de pessoas soterradas, era um feriado religioso em Portugal e as
igrejas estavam lotadas de fiéis. Por que Deus os castigaria e por que os que
estavam afastados das igrejas e de outros prédios teriam sido poupados?
Questionamentos do tipo permitiram
que Voltaire refutasse a teodiceia de Leibniz e que o Marquês do Pombal
começasse a investigação específica sobre o fenômeno, pioneirismo que abriria
espaço para uma nova ciência, a sismologia. Tendo presente a realidade
construída pela ação humana, foi com o Holocausto que a humanidade teve contato
com o mal radical e com crimes cometidos por pessoas “normais” que obedeceram,
porque desacostumadas ao pensamento. O ideal de um governo mundial, desde
então, passou a ser um desafio político; surgiram as Nações Unidas, os Direitos
Humanos emergiram como um paradigma ético secular, a realidade miserável do
antissemitismo e a história dos pogroms passaram a receber o merecido repúdio
e, assim, sucessivamente.
Um ano após a tragédia de Santa
Maria, a pergunta incômoda – e, portanto, aquela que deve ser feita em primeiro
lugar – é: o que mudou no Brasil? No RS, a mudança mais sensível e que deverá
produzir efeitos importantes é a nova legislação (Lei 14.376/2013) de
segurança, prevenção e proteção contra incêndios, de autoria do deputado Adão
Villaverde (PT), que contou com ativa colaboração da sociedade civil e de
especialistas. Tudo parece indicar, entretanto, a necessidade de reformas mais
amplas, a começar pela sempre adiada autonomia do Corpo de Bombeiros, instituição
central em qualquer política pública na área. Atualmente, apenas 18% dos
municípios do RS têm bombeiros, o que significa que mais de 400 cidades gaúchas
estão desprotegidas.
Tal carência – que poderá
inviabilizar a aplicação da nova legislação – exige a formação de serviços
mistos, coordenados por bombeiros profissionais, com poder de polícia, e com
voluntários. Tramita na AL/RS a PEC 229, apresentada pelo deputado Pedro
Pereira (PSDB), uma proposição que renova o conteúdo da PEC 45, que eu havia
apresentado há quase 20 anos, em favor da autonomia dos Bombeiros. De lá para
cá, mudaram os governos, o mundo mudou, mas o corporativismo, o cinismo e a
ausência de vocação para as reformas seguem se impondo entre nós. Infelizmente,
um ano após a tragédia da Kiss, ainda não podemos dizer: “Nunca mais”.
*JORNALISTA