quinta-feira, 20 de agosto de 2015


20 de agosto de 2015 | N° 18268 
DAVID COIMBRA

A questão fundamental

Fazia um calor dos trópicos aqui no norte do mundo, a tarde escorria para dentro do Charles River, e eu caminhava devagar pela Beacon Street, lamentando a decisão de ter saído a pé e pensando em como deve ter sido miserável a vida antes da invenção do ar-condicionado. Então vi aquele cartaz.

Na verdade, não era bem um cartaz. Era um quadro-negro pequeno, apoiado num tripé, um desses quadros que anunciam atrações e ofertas dos bares.

A propósito, nos verões dos anos 1980, eu ia sempre à Praia do Rincão, a praia de Criciúma. Ficava numa casinha pequena, de madeira, no fundo da praia. Em frente à casinha, havia um armazém, e, em frente ao armazém, havia também um quadro-negro anunciando as promoções do dia. Pois uma manhã abri a janela da casinha e vi escrito assim no quadro-negro do armazém:

“Temos carvão e bolacha”.

Passei muito tempo com os cotovelos fincados na janela, olhando para o quadro, lendo e relendo a frase, sem saber exatamente o que pensar. Por que carvão “E” bolacha? Se fossem vários itens, tipo “temos carvão, carne, leite, pão e bolacha”, tudo bem, seria uma propaganda da diversidade da vendinha. Se fossem itens correlatos, “temos carvão e gelo”, temos “bolacha e leite”, tudo bem, também, carvão e gelo são pro churrasco, bolacha e leite, pro café. Compreensível. Mas qual era a lógica de “carvão e bolacha”? Seriam essas as mercadorias mais procuradas daquele armazém da praia?

Os mistérios do mundo do comércio. Acho que jamais descobrirei o sentido disso.

Mas falava sobre aquele quadro, o do bar de Boston. Estava escrito assim, a giz, em bom inglês:

“O outro lado deste quadro é mais interessante”.

É claro que isso me fez ficar na expectativa de ler o que fora escrito do outro lado. Passei pelo tripé, virei o pescoço e li a sentença:

“Um cachorro-quente é um sanduíche”. 

Abaixo dela, uma pergunta: “Você discorda?”.

Fiquei encantado. Olhei para dentro do pub, avistei o balcão serpenteante com os banquinhos altos, a luz amarelada, duas ou três mesas encostadas à parede e, no fundo, dois homens conversando. Um estava aboletado num banco. Ele bebia algo. O outro estava atrás do balcão. Supus que devia ser o dono do pub, o autor das frases no quadro-negro na calçada. Parei para observá-lo. Embora estivesse um pouco distante, identifiquei um homem já maduro, talvez nos seus 50 anos. Era alto e sorridente.

Sabia que seria sorridente.

Um homem que escreve o que ele escreveu num quadro posto na calçada em frente ao seu bar é um homem que se diverte com a vida, é um homem que sabe que, apesar de todas as injustiças, de todas as tristezas, de todas as incompreensões, a vida está aí para ser aproveitada. 

Mesmo com dores eventuais ou nem tão eventuais, mesmo com dias cinzentos, mesmo que as coisas não estejam certas, mesmo com todas as derrotas, o melhor é levar a vida com leveza, porque às vezes a inconsequência salva, às vezes é melhor simplesmente deixar para lá e ocupar a mente apenas com questões fundamentais, como saber se um cachorro-quente, afinal, é ou não um sanduíche.