sábado, 15 de agosto de 2015



15 de agosto de 2015 | N° 18262 
CLÁUDIA LAITANO

Coração selvagem


A bola murchou, a música desafinou, a economia azedou e até o marido da Gisele Bündchen, dizem, aprontou. Notícias sobre o Brasil, lá fora, só assim, em 3D: derrota, desgraça, divórcio. Certo? Não tão rápido, Sofrenildo. Nos últimos dias, suplementos culturais dos maiores jornais e revistas americanos têm aberto espaços generosos para celebrar a descoberta de um tesouro brasileiro que agora passa a ser do mundo todo: Clarice Lispector (1920-1977).

Clarice já era uma escritora relativamente reconhecida em departamentos de literatura de universidades dos Estados Unidos e da Europa há alguns anos, mas a coletânea de contos The Complete Stories, organizada pelo biógrafo Benjamin Moser e traduzida por Katrina Dodson, alçou a escritora à categoria de fenômeno literário do momento entre os críticos americanos. É pouco provável que ela venha a se tornar um sucesso de vendas à altura do conterrâneo alquimista, mas, a julgar pela devoção quase religiosa que Clarice costuma despertar nos seus leitores, o entusiasmo da crítica é apenas o prenúncio de uma trajetória promissora fora do Brasil.

Em um país sem tradição de leitura como o nosso, Clarice nunca gozou da popularidade de uma Regina Duarte ou conseguiu viver confortavelmente apenas de literatura. Ainda assim, teve reconhecimento em vida de artistas e intelectuais. Quando publicou seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1944, pirou o cabeção de críticos como Antonio Candido e Sergio Millet – mais ou menos como está acontecendo agora nos Estados Unidos. 

Em meio a autores como José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge Amado e Erico Verissimo, que dominavam o cenário literário da época com uma ficção realista, muitas vezes de forte conteúdo político, a sensibilidade de Clarice para o estranho e o minúsculo e seu aparente desinteresse pela realidade social brasileira era um corpo estranho. Décadas depois, a ficção de Clarice não ficou menos estranha e perturbadora. Não envelheceu, mas continua não sendo exatamente uma unanimidade entre os leitores, encaixando-se melhor no perfil “ame-a ou deixe-a”.

Quando um autor morto há quase 40 anos ganha a oportunidade não apenas de ser republicado em outro idioma, mas de encontrar leitores que se comuniquem com ele, superando distâncias no tempo e no espaço, não se trata de um acontecimento apenas para sua obra ou para o país de onde ele veio, mas para a literatura em geral – principalmente em uma época em que parar tudo para ler um único livro parece exigir um enorme esforço de disciplina e autocontrole. Notícias, futebol, celebridades, os amigos nas redes sociais e até a política parecem mobilizar paixões à flor da pele, demandando atenção e dispersão constantes. Empolgam e decepcionam com a mesma intensidade – quando não nos enchem de tédio e indiferença.

Enquanto isso, como um rio subterrâneo, um grande livro segue seu curso em um universo paralelo, ignorando as agitações da superfície, mas inventando outras, mais profundas e inesperadas. Mergulhar nesse rio solitário e silencioso, mais do que nunca, pode ser uma atitude de verdadeira resistência.