RUTH DE AQUINO
21/08/2015 - 21h04 - Atualizado 21/08/2015 21h04
Eu não fui, mas gostei
As ruas deram um banho nas redes e mostraram que o metro quadrado do asfalto pode ser dividido em paz
Quem ganhou de barbada nas manifestações contra e a favor de Dilma Rousseff foi a democracia brasileira. Fiz parte dos milhões de brasileiros que não foram a nenhuma das duas. Nem no domingo 16 nem na quinta-feira 20. No país hoje tão acusado de “intolerância”, o que vi foi o exercício pacífico da liberdade de expressão. Os maiores ausentes foram os black blocs (lembram?), a violência, os danos ao patrimônio público ou privado, a intimidação policial.
Com bandeiras e cartazes, com famílias e amigos, com alegria e indignação, com esperança e até com muitas dúvidas, foram às ruas brasileiros de todos os matizes e ideologias. Mais de 1 milhão, com certeza, e muito mais contra Dilma que a favor. Nas passeatas a favor da presidente, havia protestos contra o programa econômico de Dilma, o ajuste fiscal, o ministro Levy, o arrocho a trabalhadores, à classe média e aos aposentados.
O que importa é que não vimos pancada ou tiro. Não vimos encapuzados depredando bancos e lojas. Nem bombas de gás lacrimogêneo. Não vimos jovens algemados, à esquerda ou à direita. Nem jornalistas atacados ou cinegrafistas mortos. Não vimos repressão truculenta de policiais fardados ou à paisana. Não vimos os black blocs de triste lembrança. O que aconteceu com essa turma que usou o pretexto dos 20 centavos de aumento nas passagens de ônibus para aterrorizar as ruas e o povo?
O dono das ruas foi a paz. Foram tão cordatas as manifestações de lado a lado que acabaram acusadas de artificiais, montadas ou despidas de convicção. A maior lição das ruas foi dupla. O governo Dilma não será derrubado por protestos porque não é assim que funciona uma democracia. O governo Dilma não poderá ignorar os protestos à esquerda, ao centro e à direita e terá de enfrentar uma crescente insatisfação popular. As manifestações ficaram longe da unanimidade. Havia blocos distintos e divergências profundas dentro de cada marcha.
Um personagem conseguiu unir o Brasil, acusado de roubar milhões de dólares. Somos todos – ou quase todos – contra o abominável Eduardo Cunha, por enquanto presidente da Câmara. Cristo deve se contorcer na cruz diante do mau uso que Cunha faz de seu nome: o deputado e sua mulher têm uma empresa chamada Jesus.com, com uma rede virtual, explorando a fé evangélica. Um sintoma de nervosismo de Cunha é sua repentina prudência nas declarações, com voz mais desafinada que a habitual. Renan Calheiros aconselhará o companheiro a fazer como ele fez no Senado. Renuncie. E depois volte. E volte como eu voltei, dirá Renan, amigo da rainha, sucessor de Sarney como eminência parda.
Vimos de tudo nas ruas. Os desiludidos que querem a implosão do governo Dilma e a implosão do Congresso, acabando com todas as mordomias das castas partidárias, sem pensar no futuro próximo. A esquerda que reza pela cartilha de Dilma, seja lá o que ela fizer, e isso inclui todas as concessões, como o loteamento de cargos comissionados e um Estado cada vez mais inchado e ineficiente, que oferece péssimos serviços públicos.
A esquerda que fecha os olhos aos acordos de Dilma com o grande capital, com o pior PMDB, com os empresários de telecomunicações. A esquerda que rejeita o programa econômico de Dilma por considerá-lo de direita. A social-democracia que quer a renúncia de Dilma e uma reforma política – mas defende a política econômica de Levy. A direita que quer o impeachment de Dilma. A extrema-direita que quer a volta dos militares.
O maior equívoco é cometido não nas ruas, mas nas redes sociais, que, na falta de coquetéis molotov, bombardeiam com palavras ofensivas e raciocínios primários quem pensa diferente. Comparar o Brasil de hoje ao de 1964 é uma total falta de perspectiva histórica. Há 16 anos, uma passeata em Brasília pediu “fora FHC”, e Lula disse: “Renúncia é um gesto de grandeza. Só um grande homem tem essa grandeza. Fernando Henrique não tem. Ele é orgulhoso e prepotente”. Ninguém chamou Lula de golpista ou nostálgico da ditadura. E FHC tinha um índice de aprovação mais alto do que o atual de Dilma. FHC plagiou Lula na semana passada. E foi uma comoção geral.
Chamar todo oposicionista de fascista, rico, golpista e coxinha. Chamar todo petista de burro, pobre, pelego e mortadela. Esse festival de besteiras também faz parte, infelizmente, da democracia. Mas as ruas deram um banho nas redes sociais. Mostraram que o metro quadrado do asfalto pode ser dividido em paz, no mesmo dia e na mesma hora, por quem defende inúmeras saídas para a crise política e econômica do Brasil. As ruas deram seus recados. Vamos escutar e agir.