sábado, 15 de agosto de 2015



16 de agosto de 2015 | N° 18263 
L. F. VERISSIMO

Gostos


Muita gente se surpreendeu quando John Lewis, pianista do Quarteto de Jazz Moderno, declarou que o futuro do jazz era Ornette Coleman. A música do saxofonista Coleman, que morreu há poucas semanas, era quase o oposto do que Lewis fazia, no piano e nas suas composições para o quarteto. Coleman levou o jazz a extremos experimentais beirando a cacofonia, o quarteto tocava com uma limpidez formal beirando o preciosismo. 

Era de se supor que Lewis esperasse que o jazz seguiria o caminho que ele mesmo escolhera para o seu quarteto, o do jazz de câmara, longe das estridências de Coleman e suas bandas (quase sempre quartetos também) e de outros praticantes do “free jazz”. O próprio Coleman deve ter se surpreendido com a previsão de Lewis.

É verdade que a crítica que se fazia ao quarteto, a de ser refinado demais, era imerecida. A grande mágica do Quarteto de Jazz Moderno e a razão do seu sucesso artístico e comercial era a combinação do estilo de Lewis, tão evocativo do espírito barroco que ele às vezes preferia o cravo ao piano, e o estilo do vibrafonista Milt Jackson, um dos grandes improvisadores da história do jazz e um blueseiro autêntico. 

Lewis e Jackson formavam uma paradoxal dupla de contrários que se completavam, e há poucos prazeres musicais maiores do que ouvir o vibrafonista se soltando em cima de um bem pensado “riff” de apoio do pianista. Mesmo assim, a declaração de Lewis sobre Coleman pareceu estranha. Especulou-se que o que ele quis dizer foi que seu quarteto representava o fim de um tipo de jazz, “con alma” mas racional, antes da chegada dos libertários estridentes. Algo como “depois de nós, o dilúvio”.

Gosto é o que mais se discute, e alguns gostos são difíceis de explicar. O trompetista Miles Davis tocou com alguns dos melhores pianistas do seu tempo (Bill Evans e Keith Jarrett, para citar só dois). Supõe-se que os convocou para apresentações dos seus lendários grupos e para suas gravações antológicas. Mas Miles era, notoriamente, fã de Ahmad Jamal, um bom pianista, mas de segundo time. 

Nunca, que eu saiba, tocou com ele, mas o elogiava e dizia que sua baixa cotação entre os críticos, apesar da sua popularidade, era injusta. Uma possível interpretação para a opinião insólita de Miles seria que, elogiando Jamal, que usava muitos espaços de silêncio nas suas interpretações, estivesse mandando um recado velado para seus pianistas, pedindo mais silêncios e menos virtuosismo. Miles era um mestre dos silêncios bem espacejados.

Pensei em tudo isto revendo na TV o excelente documentário sobre o Nelson Freire feito pelo Waltinho Moreira Salles. A certa altura do filme, Freire confessa que tem muita inveja dos pianistas de jazz, e dá como exemplo de quem gostaria de ser... o Erroll Garner. Tudo bem. Garner tocava com a alegria que Freire admirava. Era um dos mais bem-sucedidos músicos americanos da sua época e agradava a todo tipo de plateia, não apenas aos aficionados do jazz. 

Seu sucesso como compositor (é dele o Misty) também contribuiu para sua popularidade. Mas nenhum crítico sério o colocaria entre os grandes. Mais compreensível seria se Freire – que saberia como ninguém identificar os maiores no seu instrumento – escolhesse a mistura de técnica impecável, criatividade e sentimento de um Oscar Peterson, por exemplo. Quem explica?