26 de agosto de 2015 | N° 18274
MARTHA
Bendita maldita
Assisti ao documentário sobre Cássia Eller e, ao terminar, pensei: tanta gente iria gostar, iria entender – ou não iria entender, mas ficaria mexido... É o que estou fazendo aqui. Convidando.
O filme segue a cronologia do nascimento à morte, cobrindo a infância, as primeiras apresentações, as relações amorosas, a maternidade e, por fim, o sucesso. Mas é muito mais do que um simples registro biográfico, e o interesse que desperta não se restringe aos fãs. É uma aula sobre diversidade.
Cássia era tímida. Cássia era vulcânica. Cássia era um doce. Cássia era o demo. Cássia era recatada. Cássia era despudorada. Cássia era roqueira. Cássia era sambista. Cássia era macho. Cássia era fêmea.
Para muitos, o parágrafo acima traz inverdades. Cássia era avaliada pelo senso comum apenas pelo seu lado B, e foi enquadrando-a desse jeito, como uma Janis Joplin tupiniquim, que muitos a digeriram. Cantora talentosa e porra-louca: pronto, está carimbada. Pode colocar na estante dos estereótipos.
Só que não. Todas as afirmações acima estão corretas, e essa multiplicidade de facetas deixa o povo inquieto. As pessoas costumam querer saber direitinho com quem estão lidando, e esse “direitinho” implica um perfil exato e coerente. Se não for assim, a maioria desiste e se afasta. Paradoxos dão trabalho.
Cássia Eller, além de encantar através da sua arte, confirmou que as pessoas não precisam ser malucas ou caretas, boazinhas ou endiabradas, isso ou aquilo. A conjunção alternativa – ou – exige um posicionamento, mas o fato de termos um caráter preponderante não aniquila a segunda hipótese. Mais vale enxergar o mundo através da conjunção coordenativa: e. Somos malucos e caretas, bonzinhos e endiabrados.
Cássia administrava, a seu modo, todas as mulheres e homens que nela existiam. Todas as sonoridades. Todas as reações. Ficava travada diante de um estranho, mas era uma leoa em cima de um palco. Ia de coturno para os bares, mas usava vestido floreado quando grávida. Tinha tudo dentro dela e esse tudo transbordava conforme a demanda do momento, e se isso confunde, azar do confundido. É vida sendo vivida às ganhas.
No final, o documentário traz uma rápida, mas necessária reflexão sobre como a imprensa foi apressada e leviana ao noticiar a morte da cantora. E, com mais destaque, mostra como foi a disputa pela guarda de Francisco Eller, com oito anos na época.
Numa decisão precursora, o garoto ficou com a companheira de Cássia, com quem ele vive até hoje. Chico, como é conhecido, está lançando seu primeiro CD e, aos 21 anos, é retraído como a mãe, ao menos para entrevistas. Quando alguém pergunta sobre sua história, em vez de responder, ele pega o violão e avisa: “A música é outro jeito de contar”.
É sobre isso o documentário. Todos nós temos mil maneiras de nos contar.