sábado, 29 de agosto de 2015




30 de agosto de 2015 | N° 18279 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Facundo de novo


Terminei de reler agora o clássico argentino Facundo, ou Civilização e Barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento. Editado pela primeira vez em 1845, tornou-se imediatamente uma referência para o país, e retorna ao convívio brasileiro em tradução de Sérgio Alcides, com instigante prefácio de Ricardo Piglia, pela editora Cosac Naify.


Os dois nomes não podem ser embaralhados: Sarmiento, o escritor, viveu entre 1811 e 1888, tendo sido presidente da Argentina entre 1868 e 1874. Facundo, o assunto do livro, se chamou, por extenso, Juan Facundo Quiroga e viveu entre 1788 e 1835, tendo sido um caudilho de importância na região de La Rioja. No livro, Sarmiento conta a história de Facundo, mas faz bem mais que isso: analisa o mundo dos gaúchos da Argentina, mostrando seu estilo de vida, suas virtudes e suas barbaridades, mirando um objetivo mais amplo – no fundo, o livro ataca Juan Manoel de Rosas, presidente da Argentina no momento da produção e da edição do livro, ambas feitas, por sinal, no Chile, onde o autor estava exilado.

(Numa possível enumeração de paralelos entre a Argentina e o Brasil, o primeiro poderia ser este: lá, desde os primeiros tempos da independência do país se estabeleceu uma tradição de confronto que implicava em exílio – quem perdia, era mandado para fora do país, ou fugia mesmo, para poder sobreviver, como foi o caso de Sarmiento. No Brasil, as disputas de poder apenas uma vez levaram ao exílio, justamente na ditadura inaugurada em 64. De algum modo, no Brasil sempre prevaleceu um acordo de cavalheiros entre as partes que disputavam o poder, que permitia a permanência na sombra mas dentro do país; na Argentina, o confronto foi mais aberto e claro. Vantagem?)

Ao longo do tempo, comentaristas brasileiros buscaram paralelos entre o Facundo e Os Sertões, de Euclides da Cunha, mostrando por exemplo que o pampa argentino e o sertão baiano são afins entre si pela distância de ambos em relação às cidades europeizadas da costa, Buenos Aires e Rio de Janeiro. Da mesma forma, há nos dois clássicos um notável empenho em descrever as populações interioranas, o gaúcho e o sertanejo, ambos mostrados em seu cotidiano e em sua visão do mundo.

Tem cabimento, claro, mas as diferenças não podem ser minimizadas. Para além da distância no tempo – o livro de Euclides saiu em 1902, meio século depois do outro –, Os Sertões tem em seu centro uma guerra contra uma população miserável, liderada pelo Antônio Conselheiro, figura religiosa, enquanto Facundo gira em torno de um grande proprietário ligado ao poder central do país naquele momento.

Outra grande diferença é que o Facundo é, no geral, de leitura muito mais transparente do que Os Sertões. Aquilo que no livro de Euclides da Cunha é um esforço de linguagem, envolvendo rebuscamento e de vez em quando algum pernosticismo cientificista, no livro de Sarmiento é fluência, em descrições e relatos que se deixam ler com grande facilidade. Uma diferença que pesa contra o nosso clássico, que mesmo assim merecia ser muito mais lido.

(Para nós cá do sul do Brasil, a leitura do livro de Sarmiento tem outros interesses, é claro. A perspectiva da dualidade excludente, ao modo do nosso grenalismo, está na alma do livro, a começar do título – o autor não tem qualquer dúvida de que há apenas duas possibilidades, a barbárie representada pelo Facundo e por Rosas, a civilização representada pelo ponto de vista culto e cosmopolita que se encontra na educação, na política institucional, no cultivo da inteligência letrada.)

Quando lembra o uso da degola como método rotineiro da truculência do Facundo, o estudo imediatamente se reporta ao hábito carniceiro do gaúcho. Quando descreve o estilo de vida da pampa, mostra o desprezo do gaúcho pela cidade, pelo refinamento intelectual, pelos hábitos citadinos. Estando no polo oposto ao do caudilho gaúcho biografado mas tendo nascido no interior, Sarmiento fica à vontade para escrever de modo claro e consistente, e para acrescentar toda uma reflexão sobre a Argentina como uma construção inacabada entre a Europa e a América.

Reflexão sintética assim o Brasil não foi capaz de fazer, naquele tempo – nem depois, me parece.