sábado, 22 de dezembro de 2018


22 DE DEZEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Até a minha mãe anda armada

Nunca imaginei que a minha mãe, de 79 anos, andasse armada, logo a gentil Maria Carpi, logo a patrona da Feira do Livro de Porto Alegre, logo aquela senhora elegante e inofensiva, educada e de português clássico, capaz de empregar uma mesóclise num trivial cafezinho.

Foi um escândalo para a minha percepção de filho e poeta. Será que a insegurança da capital gaúcha produzia uma nova vítima do pânico, formava uma surpreendente aliada do conservadorismo?

Não fazia sentido a mudança de mentalidade, pois ela sempre se mostrou pacificista, da política de não agressão.

Não havia como antever que, naquela simples bolsinha marrom que ela usa atravessada no corpo, poderia ter uma arma.

Levei-a para almoçar fora, no Mercado Público. Depois da tainha com camarão no Gambrinus, ela recusou a sobremesa por uma súbita vontade de fruta. Passamos em uma fruteira e escolheu duas laranjas lindas, com o umbigo à mostra. Ainda brincou:

- São laranjas bronzeadas.

Deduzi que comeríamos em casa. Mas ela se ajeitou no banco de pedra na largo Glênio Peres, como se o centro da cidade fosse a sua varanda, e tirou uma faca do fecho interno da bolsa. Levei um susto: por que diabos carregava uma lâmina em nosso passeio?

- Que faca é essa, mãe?

Ela riu, curtiu o meu espanto antes de me responder.

- É a faca de frutas de nonna. Sempre a carrego comigo, cabo de marfim vermelho abençoado. Tem a força de um terço. Algo de minha mãe permanece comigo, algo do interior do Estado, algo da infância de Guaporé. A minha saudade assim não fica triste porque posso descascar laranjas pensando que é ela que descasca para mim. Viro menina de novo.

Eu, simbolicamente, arrastei o meu quadril mais para a ponta do banco e abri espaço para a vó sentar no meio de nós. A ausência era real e benéfica.

O vento do Guaíba penteava os cabelos grisalhos de Maria, enquanto as cascas se espiralavam em nossas mãos. Dois movimentos de rara beleza confluindo para nunca mais esquecer aquele momento, uma trégua no tempo agitado de Natal e na pressa de nossos dias.

Minha mãe estará, pela vida inteira, armada de amor.

CARPINEJAR

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