22 DE DEZEMBRO DE 2018
PAULO GLEICH
LEMBRANÇAS NATALINAS
Vésperas do Natal, uns 25 anos atrás, reunião de família. Anúncio: naquele ano, a festa seria de perus magros, à altura do mirrado orçamento familiar. Vivíamos da bolsa de doutorado da mãe e das minguantes economias do pai, que buscava, sem êxito, trabalho no país para o qual haviam se mudado com seus quatro filhos, com a louca coragem que não raro acompanha a realização de um desejo.
Não haveria grandes presentes como em outras épocas, o cardápio seria mais simples do que as faustas ceias dos comerciais de TV. Lembro de uma sensação de envergonhado pesar na fala dos pais, que, no entanto, não se criou entre os filhos: a nós, foi dada a incumbência de decidir, respeitadas as limitações financeiras, o cardápio da ceia. O consenso foi, talvez, o mais rapidamente alcançado em uma discussão familiar: comeríamos cachorro-quente.
Adolescente, me orgulhei em segredo da ousadia de meus pais em topar a inusitada escolha. Mais lhes importava a alegria dos filhos do que o valor gastronômico da ceia. Além disso, à família se juntaram alguns expatriados perdidos por aquelas bandas, trazendo um bem-vindo antídoto à inevitável emergência das neuroses e picuinhas familiares. Pode ser que minha memória embaralhe as lembranças dos três Natais que passamos naquele país, mas pouco importa: as que guardei são todas boas.
Lembro que ganhamos presentes, daqueles que, por pudor por seu baixo custo, chamam-se lembrancinhas, como se não merecessem o título oficial. Eram artigos de necessidade, como pantufas novas para atravessar o inverno - que, aliás, eram cabeças de gorila de pelúcia, o toque frívolo que dá a um objeto a qualidade de regalo. Nunca as esqueci, bem como a primeira lâmina de barbear que ganhei naquele Natal, reconhecimento concreto de que me tornava um homem, apesar dos ainda parcos fios de bigode.
Muitos anos depois, a mãe confessou seu sofrimento por, naqueles anos, não poder presentear os filhos com seus objetos de desejo - como as cobiçadas calças Levi?s que, naquele tempo e lugar, eram os distintivos trajados pelos adolescentes. Não que fosse afeita a marcas e grifes, pelo contrário, mas desejava poder dar a felicidade que, imaginava, seus filhos teriam com a sonhada vestimenta. Talvez ainda não soubesse que filhos e mães são fadados à insatisfação mútua - ao menos, quando tudo corre mais ou menos bem.
O Natal é a festa familiar por excelência, e talvez por isso seja tão amado quanto odiado - como são os sentimentos que circulam nesses afetos tão próximos, nunca tão puros como os idealizamos. É fácil uma faísca virar fogueira, pois a família é também uma lembrança viva de nossas origens, um espelho no qual às vezes é difícil se enxergar. Não são infrequentes os relatos de desavenças, frustrações e desencontros sob as luzes natalinas.
Seja como for o Natal de cada um, é uma boa ocasião para refletir sobre o que fazemos com essas relações que nos constituíram e que levamos para sempre conosco. Talvez escolhi guardar na lembrança o Natal do cachorro-quente por representar o melhor de minha família: uma criatividade um pouco excêntrica e uma porta sempre aberta para receber o outro. Não se decide nascer em berço de ouro ou manjedoura, mas ao crescer são possíveis algumas escolhas para não ficar eternamente preso nas presepadas familiares.
PAULO GLEICH
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