segunda-feira, 31 de agosto de 2015



31 de agosto de 2015 | N° 18280 
DAVID COIMBRA

Gil, Caetano e R$ 600 na conta

Um ingresso para assistir ao show de Gil e Caetano custou mais ou menos o que um professor do Estado receberá hoje como parcela de pagamento do seu salário. Mesmo assim, pelo que soube, o show estava lotado. O preço, assim, se justifica. Caetano e Gil estavam certos ao cobrar o que cobraram.

Marx já ensinou que o capitalista detém os meios de produção e o proletário vende a sua capacidade de trabalho. O artista não é nem um nem outro, mas é mais parecido com o proletário, embora sua mercadoria, o talento, seja subjetiva. Se eu, Caetano e Gil apertarmos parafuso numa fábrica de carros, nosso trabalho valerá o mesmo. Ganharemos idêntico salário. Eu, Caetano e Gil apertamos parafuso, e aí está, e pronto.

Eu, Caetano e Gil também cantamos. Mas, se eu cobrar R$ 5 para que as pessoas ouçam minha maviosa voz, ninguém pagará. Justo eu, notável intérprete de Paulinho da Viola nas rodas da madrugada. Violão, até um dia, quando houver mais alegria eu procuro por você...

Já Caetano e Gil, por seu talento e sua história, valem a parcela de um salário de policial ou professor, e a prova disso é que as pessoas aceitaram pagar e o fizeram até com gosto.

E o professor e o policial, que hoje verão R$ 600 lhes pingando na conta bancária, quanto o trabalho deles vale para a sociedade? Por que eles ganham tão pouco?

Aqui, nesse escaninho dos Estados Unidos em que vivo, professores e policiais são tratados de uma forma que indica bem o apreço que a população sente por eles. Policiais de rua, singelos vigilantes de trânsito, têm e exercem uma autoridade jamais questionada. “Yes, sir!”, é como você responde a um policial que o interpela.

E o professor... Compreenda: não estou falando do enfatuado professor universitário, aquele que, no Brasil, ganha as benesses do Estado e a veneração dos estudantes. Estou falando do professor de ensino básico e fundamental. Pois esse professor, aqui, é uma estrela. O professor da escola pública recebe salário maior do que o da escola privada, e os melhores entre eles são disputados como centroavantes. 

A comunidade ajuda e participa. No ano passado, a escola do meu filho anunciou a intenção de dar um aumento de US$ 250 para cada professor da primeira série. A direção apresentou o orçamento da escola e informou quanto a mais era necessário para dar o reajuste. Os pais podiam colaborar? A maioria colaborou, e o aumento foi concedido.

Um mês depois, a filial do supermercado Whole Foods divulgou que, em um determinado dia, 5% da receita seria para a educação básica da cidade. Todos foram comprar lá.

Parece que esse tipo de iniciativa não é possível no Brasil. Li, em algum lugar, que isso seria considerado “privatização da escola pública”. Curiosamente, não se cogitou o contrário: de que, com as doações, o dinheiro privado estivesse se tornando público. Seja...

O brasileiro sabe valorizar grandes artistas, como Caetano e Gil. O brasileiro sabe o valor de um meia cobrador de falta. Sabe também, o brasileiro, quanto vale o médico que lhe tira a dor ou o advogado que lhe resolve a disputa com o vizinho. Mas será que o brasileiro, que tanto clama por segurança e educação, sabe quanto valem o policial e o professor?



31 de agosto de 2015 | N° 18280 
MOISÉS MENDES

O nosso rei

Se pudesse escolher entre a volta do coronelismo e a volta da monarquia, eu ficaria com a monarquia. O coronelismo mineiro misturado ao coronelismo paulista é sempre ameaçador. Os dois não esquecem a Revolução de 30 e estão por aí de novo, com todo tipo de manobra para tentar voltar ao poder, do jeito que for possível.

Uma monarquia atenuaria até a força de um eventual governo de coronéis e nos brindaria com a fantasia, a magia e as fofocas da família real. Os britânicos preservam a adoração pelos Windsor por causa da estabilidade, da sensação de que os valores se mantêm, de que nada, nem os escândalos, ameaça a ilusão da perenidade.

O Brasil, que pôs a correr seu rei, poderia trazer outro da Europa e acabar com a crise política provocada em boa parte pelos coronéis. Com as vantagens de um ambiente monarquista, acabaríamos com as conversas repetitivas e cansativas de golpe e de impeachment.

Mas não com a volta de um Orleans e Bragança, e sim com um Windsor. Importaríamos de Londres o príncipe Henry Charles Albert David Mountbatten-Windsor. Aqui, ele seria bem mais do que Harry, o eterno adolescente que diverte os britânicos com suas estripulias. O príncipe de Gales seria coroado, não como Rei Henrique, mas de uma forma mais despojada, como Hique, o Imenso, Imperador do Planalto Central.

Na Inglaterra, Harry não será nada além do que já é. Lá, ele é o quinto na linha de sucessão ao trono britânico, atrás do pai, Charles, do irmão, William, do sobrinho George e da sobrinha Carlota de Cambridge.

Em Londres, o rapaz será sempre um figurante. É mais fácil o Aécio finalmente reconhecer que perdeu a eleição do que Harry ser rei na Inglaterra. Que seja então no Brasil.

As circunstâncias nos favorecem. O príncipe adora samba e futebol e apaixonou-se pela brasileira Antônia Packard. E não seria novidade nenhuma um rei importado. O Brasil já teve o seu, e os nobres sempre transferiram suas famílias de um país para outro.

O próprio sobrenome Windsor é inventado, para esconder a porção germânica das origens da família real. Então, que venha o Harry. Aqui, ele poderia ser um Mountbatten-Windsor-Silva.

É claro que teríamos um governo plebeu, como os britânicos têm, mas a monarquia, com casamentos arranjados, traições e o nascimento de uma criança por ano, nos manteria em permanente diversão.


31 de agosto de 2015 | N° 18280 
L. F. VERISSIMO

Insensatez


O mais impressionante no assassinato da repórter e do câmera nos Estados Unidos é que, entre seu crime e sua captura e suicídio, o criminoso teve tempo de botar na internet o vídeo que ele mesmo fez do atentado e emitir um “twitter” e mandar um fax justificando seu ato. O assassino escreveu que Jeová mandou ele matar os ex-colegas, mas o que ele fez não foi em obediência a nenhum deus tradicional, foi uma oferenda à divindade moderna da comunicação global. 

O que ele conseguiu, acionando os vários meios ao seu dispor para transmitir seu feito enquanto era perseguido pela polícia – o vídeo gravado pela sua própria câmera e todos os recursos da internet para propagá-lo, além do recurso obsoleto do fax –, foi uma façanha tecnológica. E ele podia contar com a neutralidade moral da internet para absolvê-lo. Na internet, o psicopata convive com o santo, o imbecil com o gênio e ninguém é culpado. A única condição que a internet não admite nos seus frequentadores é o remorso.

Como acontece depois de todos os atentados à bala nos Estados Unidos, volta à discussão o controle do comércio de armas no país, onde qualquer maluco pode entrar numa loja e comprar uma bazuca. E, como também sempre acontece, o poderoso lobby da bala derrotará qualquer iniciativa nesse sentido. Em alguns Estados americanos, há regulamentos para a venda de armas. 

Pedem atestados de que você não é maluco nem sairá da loja já atirando em transeuntes, ou estabelecem um período de franquia em que investigam seu passado para saber se você usará sua metralhadora com responsabilidade. Mas, mesmo nos Estados em que há regras para dificultar a venda de armas, há maneiras de contorná-las, como exposições da indústria bélica em que a venda é livre.

A American Rifle Association (ARA), cujo lobby é o mais atuante e rico de Washington, tem conseguido evitar que o Congresso americano aprove qualquer lei para tentar impedir as chacinas. Como na bancada da bala no Congresso brasileiro, mas em escala maior e mais insensata, o acúmulo de horrores como o da última semana não emociona ninguém. 

A ARA tenta racionalizar sua posição com frases do tipo “armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”, ao que a resposta óbvia – que também não emociona ao ponto de acabarem com a insensatez – é “pessoas não matam pessoas, pessoas armadas matam pessoas”. Mas há poucas possibilidades de o bom senso finalmente derrotar a ARA. Talvez no próximo horror.



31 de agosto de 2015 | N° 18280 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

LOST IN TIME


Pois não é que já são 50 anos desde que a família Robinson, um robô e o clandestino mais mala da galáxia saíram por aí em busca de novos planetas para a humanidade ocupar?

Perdidos no Espaço é de 1965, e desde logo virou mania mundial. Aqui no Brasil, era um dos programas mais assistidos, e o robô berrando “Perigo” ou “Não tem registro” fazia parte do universo visual e afetivo de praticamente todos os seres vivos.

A diferença é que aquele mundo de 1965 era tão mais simples! Truques baratos nos convenciam, espaçonaves de isopor passavam por naves de verdade, planetas inteiros de papel crepom ocupados por monstros de 25 centavos nos assombravam! Éramos crédulos, muito crédulos, e a TV tinha uma imagem tão ruim que não era difícil nos convencer de que aquela criatura terrível não era de borracha, mas, sim, um dos mais infernais seres que jamais ocuparam Alfa Centauro.

O que aconteceu de verdade, a partir dos anos 2000 e dos displays de plasma, LDC, LED, conexão a cabo e unificação com a internet, é que várias inovações se reuniram em nossa sala de estar, e a televisão deu um salto, ocupando o espaço que antes era do cinema. A televisão de mentirinha, dos bons tempos de Perdidos no Espaço, virou a televisão para valer que vemos hoje.

É muito bacana a gente parar para ver como era tudo há apenas 50 anos, e Perdidos no Espaço é uma das melhores formas de reviver e recordar. Aproveito e mostro para a novíssima geração como eram os efeitos especiais de Perdidos no Espaço e Thunderbirds, e, ora vejam, as crianças de hoje amam. As séries de antanho mostram que viemos de longe e avançamos muito rapidamente. É bom fazer um salto analógico até o sofá e ver um pouco dessas preciosidades de uma época que não volta mais.

Se vocês tiverem um tempo nesses próximos dias, deem um jeito de ver, em DVD ou como for. O passado tem muito a nos ensinar, tem a nos mostrar um mundo mais simples, onde o pouco era a norma, e a imaginação criava as cores.

Fica a dica.

sábado, 29 de agosto de 2015




30 de agosto de 2015 | N° 18279 
MARTHA MEDEIROS

A teoria do cachorro molhado

Gatos não gostam de banho, é sabido. O meu detesta. Outro dia o deixei numa pet shop para uma ducha completa e, duas horas depois, meu telefone tocou: eram os funcionários se desculpando, pois não haviam conseguido cumprir a missão. Haviam colocado o Nero numa jaulinha aguardando sua vez, e quando a vez chegou ele virou um tigre. Um tigre com dor de dente e pedra no rim, ninguém conseguiu encostar na fera. Saiu da pet shop tão imundo como entrara.

Quando a coisa aperta, o jeito é apelar para fórmulas caseiras. No dia seguinte, estávamos eu e minha filha conversando na cozinha quando vimos que Nero havia saltado para dentro do tanque da área de serviço a fim de lamber algumas gotas de água que sobraram por ali. Nem ao menos traçamos um plano verbal: bastou uma troca de olhares entre mim e ela para sabermos o que deveria ser feito. Me aproximei, abri a torneira bem devagarzinho e deixei cair um filete sobre a cabeça do bichano. Para nossa surpresa, não houve reação. 

Então passamos um sabonete líquido de uma forma meio disfarçada, como se estivéssemos fazendo um cafuné, até que tivemos que abrir mais a torneira para retirar o sabonete, e aí começou a selvageria. Pouparei você dos detalhes, já bastam as notícias catastróficas dos jornais. O que posso dizer é que Nero se sentiu traído, violentado, agredido, surrupiado em seus direitos. Mostrou as garras e jurou ódio eterno à família.

No entanto, o ódio eterno não durou nem três minutos, graças ao seu recurso de secagem instantânea. Não foi preciso enxugá-lo com uma toalha, ele preferiu fazer o serviço sozinho enquanto andava pela casa. Usou a teoria do cachorro molhado, que serve para gatos também: uma boa sacudida resolve.

Bem que podia ser assim conosco, seres de duas patas. Quer se livrar do que não lhe serve, quer tirar de cima um encosto, quer liberar-se do que é pegajoso, grudento, insatisfatório? Uma boa agitada na cabeça, tronco e membros, como se estivesse recebendo um passe. Pronto. Igualzinho como a gente faz quando sai da piscina, quando encontra refúgio numa marquise para fugir da chuva, quando escapa de uma nuvem de poeira. Abanar-se, arejar a roupa do corpo com umas puxadinhas, agitar os cabelos de um lado para o outro, até que o que não lhe pertence descole de você.

Funciona com água, poeira, fuligem, areia. Mas deveria funcionar também para mágoas, maus pensamentos, paranoias. Uma chacoalhada e xô, vai tudo embora, nos deixando zero bala de novo. Sem precisar da ajuda de Freud, Lacan, Jung, apenas adotando a teoria do cachorro molhado. Tente, às vezes a gente consegue. Uma boa sacudida e o ódio eterno por tudo e todos não excede mais do que três minutos.


30 de agosto de 2015 | N° 18279 
CARPINEJAR

Amiga para sair


Homem pode sair sozinho para uma balada e não vai parecer um psicopata.

Pelo contrário, será visto como um caubói, corajoso, livre atirador.

Sempre haverá um balcão para sentar e se mostrar seguro, sempre haverá um barman para puxar conversa e se distrair enquanto o tempo passa. Não depende de matilha e bando para se sobressair. Usufrui de independência para correr riscos, sem a pecha do isolamento, sem a carga social do abandono, sem a obrigatoriedade de uma cumplicidade aos seus crimes amorosos.

Já há um preconceito contra as mulheres.

É ela estar sozinha num bar em alta noite que já recebe todas as suspeitas. É fotografada culturalmente mais do que terrorista lendo jornal em metrô.

Torna-se dependente de uma amiga. Toda mulher precisa de uma amiga solteira. É um item indispensável para alçar voos e mergulhar na boemia.

Não pode somente aceitar o encontro de um homem para uma festa, precisa convencer a amiga, o que não é uma operação simples, mas uma trabalheira.

A aposta de flerte acaba sendo um convite coletivo.

Para um encontro a dois, a mulher recorre a um plano diabólico, a uma operação militar, a um cavalo de Troia.

Tem que cavar atrativos para tirar a sua amiga de casa. No desespero, é capaz de se oferecer para custear o táxi e a consumação. Ou de buscar e levar de volta. Ou de emprestar uma roupa e, inclusive, pagar a manicure.

A ala masculina não faz ideia do esforço de agenda: telefonar sem parar para voluntárias. Pior do que marcar futebol numa segunda-feira chuvosa.

O “sim” para ver alguém logo vira um “e agora, quem vai comigo?”. Bate um terror, uma caça às bruxas, uma acalorada licitação no Facebook.

A mulher é obrigada a trabalhar e ainda achar uma fresta em seu rápido intervalo para efetuar ligações e mandar mensagens e descobrir quem está disponível para a camaradagem e explicar a aproximação com aquele candidato.

Largar a vida de solteira requer primeiro persuadir uma confidente, com nenhum motivo em especial para o programa. Pois o papel da acompanhante não deixa de ser vexatório. Cumprirá a sina de segurar a vela e desfrutar do timing para abandonar a cena de fininho quando pintar uma atmosfera romântica. Sofrerá o constrangimento de se preparar e se maquiar para nada, apenas para atender aos caprichos de uma amizade.

Há grandes riscos de desistir da roubada na última hora e duplicar o caos da interessada.

E o que era difícil – arrumar uma companhia – transforma-se em missão quase impossível – arrumar uma nova companhia em cima do laço.

Mulher sofre para seduzir. Não subestime o que ela enfrentou para estar com você frente a frente.




30 de agosto de 2015 | N° 18279 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Facundo de novo


Terminei de reler agora o clássico argentino Facundo, ou Civilização e Barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento. Editado pela primeira vez em 1845, tornou-se imediatamente uma referência para o país, e retorna ao convívio brasileiro em tradução de Sérgio Alcides, com instigante prefácio de Ricardo Piglia, pela editora Cosac Naify.


Os dois nomes não podem ser embaralhados: Sarmiento, o escritor, viveu entre 1811 e 1888, tendo sido presidente da Argentina entre 1868 e 1874. Facundo, o assunto do livro, se chamou, por extenso, Juan Facundo Quiroga e viveu entre 1788 e 1835, tendo sido um caudilho de importância na região de La Rioja. No livro, Sarmiento conta a história de Facundo, mas faz bem mais que isso: analisa o mundo dos gaúchos da Argentina, mostrando seu estilo de vida, suas virtudes e suas barbaridades, mirando um objetivo mais amplo – no fundo, o livro ataca Juan Manoel de Rosas, presidente da Argentina no momento da produção e da edição do livro, ambas feitas, por sinal, no Chile, onde o autor estava exilado.

(Numa possível enumeração de paralelos entre a Argentina e o Brasil, o primeiro poderia ser este: lá, desde os primeiros tempos da independência do país se estabeleceu uma tradição de confronto que implicava em exílio – quem perdia, era mandado para fora do país, ou fugia mesmo, para poder sobreviver, como foi o caso de Sarmiento. No Brasil, as disputas de poder apenas uma vez levaram ao exílio, justamente na ditadura inaugurada em 64. De algum modo, no Brasil sempre prevaleceu um acordo de cavalheiros entre as partes que disputavam o poder, que permitia a permanência na sombra mas dentro do país; na Argentina, o confronto foi mais aberto e claro. Vantagem?)

Ao longo do tempo, comentaristas brasileiros buscaram paralelos entre o Facundo e Os Sertões, de Euclides da Cunha, mostrando por exemplo que o pampa argentino e o sertão baiano são afins entre si pela distância de ambos em relação às cidades europeizadas da costa, Buenos Aires e Rio de Janeiro. Da mesma forma, há nos dois clássicos um notável empenho em descrever as populações interioranas, o gaúcho e o sertanejo, ambos mostrados em seu cotidiano e em sua visão do mundo.

Tem cabimento, claro, mas as diferenças não podem ser minimizadas. Para além da distância no tempo – o livro de Euclides saiu em 1902, meio século depois do outro –, Os Sertões tem em seu centro uma guerra contra uma população miserável, liderada pelo Antônio Conselheiro, figura religiosa, enquanto Facundo gira em torno de um grande proprietário ligado ao poder central do país naquele momento.

Outra grande diferença é que o Facundo é, no geral, de leitura muito mais transparente do que Os Sertões. Aquilo que no livro de Euclides da Cunha é um esforço de linguagem, envolvendo rebuscamento e de vez em quando algum pernosticismo cientificista, no livro de Sarmiento é fluência, em descrições e relatos que se deixam ler com grande facilidade. Uma diferença que pesa contra o nosso clássico, que mesmo assim merecia ser muito mais lido.

(Para nós cá do sul do Brasil, a leitura do livro de Sarmiento tem outros interesses, é claro. A perspectiva da dualidade excludente, ao modo do nosso grenalismo, está na alma do livro, a começar do título – o autor não tem qualquer dúvida de que há apenas duas possibilidades, a barbárie representada pelo Facundo e por Rosas, a civilização representada pelo ponto de vista culto e cosmopolita que se encontra na educação, na política institucional, no cultivo da inteligência letrada.)

Quando lembra o uso da degola como método rotineiro da truculência do Facundo, o estudo imediatamente se reporta ao hábito carniceiro do gaúcho. Quando descreve o estilo de vida da pampa, mostra o desprezo do gaúcho pela cidade, pelo refinamento intelectual, pelos hábitos citadinos. Estando no polo oposto ao do caudilho gaúcho biografado mas tendo nascido no interior, Sarmiento fica à vontade para escrever de modo claro e consistente, e para acrescentar toda uma reflexão sobre a Argentina como uma construção inacabada entre a Europa e a América.

Reflexão sintética assim o Brasil não foi capaz de fazer, naquele tempo – nem depois, me parece.



30 de agosto de 2015 | N° 18279 
ANTONIO PRATA

Googlall



Vira e mexe, me vejo bisolhando o sujeito na mesa ao lado e espremendo o cérebro feito um limão: de onde eu conheço esse cara? Terá sido meu companheiro no chalé 4 do acantonamento Rancho Ranieri, em 1987? O namorado da prima de uma ex-namorada, na faculdade? Um passageiro com quem troquei três frases na ponte aérea, semana passada?

Muito em breve, essa e outras questões serão resolvidas num piscar de olhos. Literalmente: bastará encarar a pessoa através das nossas lentes de contato digitais e uma legenda aparecerá, como na viseira do Robocop: “Pedro Arruda, 35, advogado tributarista, vulgo ‘Goiabão’, roubou seus bonecos do Comandos em Ação na quarta série”.

Tudo estará na rede e a rede estará em nós. Imagine um novo casal tendo aquela típica conversa sob os lençóis: “Que coisa doida a gente nunca ter se esbarrado por aí antes... Será que a gente já passou pertinho um do outro em algum lugar?”. Como seremos chipados ao nascer, os namorados poderão ver as situações em que estiveram mais próximos dando um rápido rewind nos GPSs pessoais. 

E já que as lentes filmarão o tempo inteiro, do exame do pezinho à pá de cal, dará até para assistirem às cenas de seus quase encontros: na infância, a três assentos de distância, no barco viking do Playcenter; na adolescência, se cruzando numa passeata dos “caras-pintadas”; numa tarde modorrenta de 2003, olhando pro painel de senhas do cartório Vampré, em Pinheiros. (Essas imagens, claro, estarão no vídeo de casamento dos dois, mandado diretamente para as lentes dos convidados.)

Nem só pra fora, infelizmente, olhará o Big Brother. Imagina que saco, você numa churrascaria e um bip alertando que a quantidade necessária de proteínas foi ultrapassada e é recomendável comer mais fibras. (Neste momento, as alfaces da travessa piscarão em suas lentes, como pop-ups na tela do computador.) Rodízio só será um programa viável se você estiver devidamente desplugado.

Se na ingestão a ferramenta será uma mala sem alça, na digestão poderá ser uma mão na roda. Sabendo as quantidades de sólidos e líquidos deglutidos e cada detalhe do seu metabolismo, um aplicativo poderá te dar hora e minuto exatos em que você terá que ir ao banheiro – uma espécie de Waze corporal, com informações precisas sobre o tráfego interno.

Confesso que, quando penso neste futuro próximo, o que mais me atiça a curiosidade não são as maravilhas possíveis (encontrar doadores compatíveis, unir pessoas com fetiche por roupas de couro verdes lambuzadas por iogurte de pêssego light), mas as pequenas inutilidades. Como, por exemplo, pegar uma caneta Bic e, através das impressões digitais, descobrir as mãos pelas quais já passou, ver as fotos e perfis desses desconhecidos cujo único vínculo é uma esferográfica – e, quem sabe, uma medula óssea ou um fetiche semelhantes. 

Talvez, quando esse dia chegar, já não se precise mais de cronistas: cada pedrinha no chão, cada tijolo na parede, ao serem escaneados, contarão histórias muito mais ricas do que as que poderemos inventar. Enquanto esse dia não chega, contudo, continuamos aqui, todo domingo.



30 de agosto de 2015 | N° 18279 
MOISÉS MENDES

E os que estão soltos?


José Janene era um deputado rico e influente do PP do Paraná. Foi quem indicou Paulo Roberto Costa, um dos famosos delatores da Lava-Jato, para a direção de Abastecimento da Petrobras. Janene, da quadrilha do mensalão, era compadre do doleiro Alberto Youssef, outro delator, operador da lavagem de dinheiro no esquema de propinas do reduto do deputado na estatal. O esquema de Janene teria sido a origem da corrupção da Lava-Jato.

Poucas pessoas conheciam Janene como Paulo Roberto Costa – que devia ao padrinho a indicação a cargo tão importante e que roubava para ele – e como Youssef, parceiro de copa e cozinha e movimentador do dinheiro arrecadado sob as ordens do compadre.

Youssef voltou a dizer, na CPI da Petrobras, na terça-feira, o que já havia dito ao Ministério Público em março – Janene lhe falava da propina mensal que uma empreiteira de Furnas, a estatal de energia, destinava ao então deputado Aécio Neves, do PSDB de Minas Gerais. Uma mesada modesta, de US$ 100 mil a US$ 120 mil, paga entre 1996 e 2000.

E Paulo Roberto Costa contou, na acareação com Youssef na CPI, na mesma terça, que o senador pernambucano Sergio Guerra, então presidente nacional do PSDB, recebeu R$ 10 milhões da empreiteira Camargo Corrêa, em 2009, para melar uma CPI que investigaria as falcatruas na Petrobras.

Costa disse ter sido procurado por Guerra e pelo deputado Eduardo da Fonte, do PP de Pernambuco, e orientado sobre como deveria fazer o pagamento. E fez. E a CPI não saiu.

Mas Janene morreu em 2010 e Guerra morreu no ano passado. Os corruptos tucanos, pelo que contam Youssef e Costa, não são investigados, ou driblam as investigações e a Justiça, ou morrem antes.

Não há tucanos corruptos presos, nem o ladrão avulso Pedro Barusco, que diz ter roubado sozinho na Petrobras durante cinco anos de governos do PSDB. Se não pegam corrupto tucano vivo, imagine se pegarão corrupto tucano morto.

Você conhece aquele parente, colega ou amigo que diz torcer pela Justiça, para que no final o bem vença todos os males, desde que os delatores só apontem o dedo para as gangues petistas. Delatores são sempre desqualificados quando delatam tucanos.

Mas você, que confia na Justiça e aplaudiu Joaquim Barbosa no julgamento do mensalão, certamente confia no ministro do Supremo Marco Aurélio Mello. Marco Aurélio sempre foi criticado por ter assinado o habeas corpus que, em 2000, tirou da cadeia o banqueiro Salvatore Cacciola.

Cacciola, do banco Marka, fora mimado com um estranho socorro do Banco Central, em 1999, e por isso estava preso. Foi libertado e fugiu para a Itália. Em entrevista recente a Roberto D’Avila, na GloboNews, Marco Aurélio respondeu com uma pergunta ao questionamento do repórter sobre a decisão de soltar Cacciola: e os outros do mesmo caso, que continuam soltos?

Cacciola, disse o ministro, pelo menos foi devolvido ao Brasil, preso e cumpriu pena. Mas quantos do mesmo caso continuam por aí? É a dúvida. Quantos, do governo FH, que prestaram socorro a Cacciola e a outros flagelados, num momento de total descontrole cambial, continuam impunes? Por onde andam? – é a pergunta do ministro.

Parece que todos continuam vivos. Daqui a algum tempo, teremos os balanços, inspirados na pergunta de Marco Aurélio, dos desfechos do caso Marka, da Lava-Jato, do mensalão mineiro, de Furnas, das propinas do metrô de São Paulo e de tantos outros episódios, não só para saber quem foi preso e julgado, mas para que se saiba quantos conseguiram escapar e continuarão soltos.



30 de agosto de 2015 | N° 18279 
L. F. VERISSIMO

Acontece

Desconfiaram do homem que ficava sentado num banco do playground da praça olhando o movimento. Ele estava lá todos os dias, só olhando. Houve uma denúncia, e o homem foi levado para a delegacia.

– Sim senhor, hein? – disse o delegado. – Olhando as criancinhas.

– Que criancinhas, delegado? – disse o homem. – As mamães. As mamães!

VEXAME

Marialva aceitou o convite de Oscar para jantar no seu apartamento. Ele mesmo cozinharia. Fazia um suflê de respeito, ela iria adorar. Marialva sabia muito bem que o jantar era só um pretexto. Haveria o suflê, acompanhado de vinho, e mais vinho, e os dois acabariam na cama. Mas tudo bem, pensou Marialva. Oscar era um cara atraente. A perspectiva de ir para a cama com ele não era desagradável.

Mas as coisas não correram como Marialva esperava.

– Isto nunca me aconteceu antes – disse Oscar.

– Não tem importância – disse Marialva, para consolá-lo.

– Que vexame. – O que é isso? Acontece. – Comigo nunca aconteceu.

– Eu sei, eu sei...

– Ele simplesmente não subiu como deveria. E logo com você. Eu queria que esta noite fosse perfeita. E ele não subiu!

– Quem sabe da próxima vez...– Me faz um favor? Não conta pra ninguém o que houve. Ou, no caso, o que não houve. Preciso pensar na minha reputação.

Foi então que Marialva se deu conta de que Oscar estava falando do suflê.

ONDE E QUANDO

A conversa na roda era sobre onde e quando cada um gostaria de viver, se pudesse escolher. Algumas escolhas foram óbvias.

Uma ilha dos Mares do Sul, antes da chegada do homem branco. Eu na praia, de sarongue, cercado de nativas e comendo coco.

Outras foram mais sofisticadas.

Eu gostaria de viver em Londres na era elisabetana. Contemporâneo de Shakespeare. Indo ao teatro Globo para ver suas peças no original.

Ao que outro comentara que em Londres, na era elisabetana, o esgoto era a céu aberto e ele teria que ir ao teatro Globo pisando em cocô.

Finalmente alguém declarou que, se pudesse escolher, gostaria de viver num comercial de cerveja na TV. A alegria permanente! A camaradagem! As mulheres sensacionais! E quando cansasse de um comercial pularia para outro exatamente igual, só com outra cerveja e outras caras. Aquilo é que era vida!


29 de agosto de 2015 | N° 18278O 
PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Turismo

OS JAPONESES E OS CHINESES usavam o pincel para aplicar a tinta na página em branco

Caro leitor, escrevo diretamente da Sicília. Entre o azul do Mediterrâneo e o verde intenso dos laranjais, nosso ônibus vai serpeando pelas estradas da ilha, ligando os pontos que conservam as marcas da mitologia e da cultura clássica. Saímos de Taormina, com o seu inigualável teatro greco-romano, subimos, com o respeito que merece, o impressionante monte Etna, debaixo do qual Hefesto, o deus ferreiro, continua avivando o fogo de suas forjas, e chegamos a Siracusa, terra de Arquimedes. 

Ali, na fonte Aretusa, meu primeiro contato com os papiros – não os de enfeite, mas os de verdade, criados ao sabor dos ventos que vêm da África, balançando suas cabeleiras verdes, curvando suas longas hastes para se aproximar uns dos outros como se fossem poetas conver-sando (a bela imagem, é claro, vem da pena de Guy de Maupassant).

Foi o esperto povo egípcio quem descobriu que podia processar esses juncos (pois é exatamente isso o que eles são) para produzir folhas homogêneas, flexíveis, densas o suficiente para receber a tinta sem borrar. Este avô não tinha ainda todas as qualidades do neto que viria a nascer, o papel, mas permitiu que o homem antigo conhecesse, desde então, o prazer insubstituível de expressar por escrito seus pensamentos e suas emoções.

Os japoneses e os chineses, por exemplo, usavam o pincel para aplicar a tinta na página em branco, os egípcios e os romanos preferiam escrever com um pedaço de junco com a ponta cortada em bisel (e quem diz junco, aqui, diz cana, de onde proveio a nossa caneta, da mesma forma que da costela e do caderno saíram a costeleta e a caderneta). Em Latim, chamavam-se de calamus (do Grego kálamus) essas hastes de mais ou menos 20 centímetros, com a ponta cuidadosamente aparada e fendida, à semelhança das penas de nossas canetas modernas.

De Siracusa, fomos visitar o Etna, um dos mais poderosos vulcões ativos do Hemisfério Norte, onde o guia fez questão de enumerar as tantas calamidades que suas erupções produziram na parte leste da Sicília – o que deu a mim, modesto guia na selva dos dicionários, a oportunidade lembrar ao leitor que calamidade vem do Latim calamitas, palavra que antes de designar, como hoje, um desastre de grandes proporções, primitivamente se referia a qualquer flagelo que arruinasse as lavouras de grão ainda por colher, deitando e jogando no chão as hastes da planta – o nosso já conhecido cálamo.

Mas vamos adiante: saindo de Agrigento, quase chegando a Selinunte, nosso ônibus parou num modesto restaurante na beira da praia onde tive a felicidade de comer um inesquecível prato de calamares fritos – sem me importar nem um pouquinho em saber que o nome desse saboroso molusco vem de calamarius, nome que os romanos davam para o recipiente em que se guardava a tinta e onde se mergulhava o cálamo de escrever. 

Pois é, meu caro leitor: de Taormina a Selinunte, passando pelo Etna, por Siracusa e por Agrigento – ou do cálamo ao calamar, passando pela calamidade, tudo isso é bom turismo, que nos dá cultura e prazer.



29 de agosto de 2015 | N° 18278 
NÍLSON VARGAS

O SHOW DE AGOSTO


Carla Bruni e Sarkozy passaram por aqui. O casal esbanjou simpatia em francês, ela cantou para poucos e ele correu na orla do Guaíba, entre o Gasômetro e o Beira-Rio. Deixaram boa impressão. Espero que tenham levado pelo menos um perfume de hospitalidade desta Porto Alegre de agosto, que acorda com o canto dos sabiás e estende tapetes de pétalas para habitantes e visitantes.

O melhor espetáculo desta travessia entre o inverno e a primavera é o protagonizado pelos ipês, jacarandás e flamboyants que espalham suas cores pelas ruas e calçadas da cidade. Nossas praças e parques nunca estiveram tão lindos, pintados pelo calor atípico que engana a natureza e antecipa a floração das árvores. Quando lembro que já nevou na Capital num dia 24 de agosto, três décadas atrás, penso que talvez o aquecimento global seja mesmo uma realidade.

Eu estava em São Borja naquele dia gelado de 1984, acompanhando como repórter a visita do então candidato Tancredo Neves ao túmulo de Getúlio Vargas, no 30º aniversário de sua morte. Vi o Neves – o presidente que não chegou a sê-lo –, mas não vi a neve na minha cidade. Durou pouco, apenas o suficiente para tingir de branco alguns telhados e capôs de automóveis, como mostram as fotografias da época.

Agosto é sempre um show inédito neste cantinho do planeta.

Como Sarkozy, também faço as minhas corridinhas pela orla do lago que pensa que é rio, só que no extremo sul da cidade, entre os bairros Serraria e Ipanema. Também lá os carros passam ao lado do passeio de pedestres, mas a poluição não é tão intensa quanto a percebida pelo ex-presidente francês em sua breve incursão pela área central.

A Zona Sul é tudo de bom, diz um decalco ufanista que alguns dos meus vizinhos de bairro colam em seus carros. Não sei se é tanto assim, mas, na comparação com outras áreas da cidade, parece mesmo que nossas várzeas têm mais flores e nossos bosques têm mais vida. As calçadas de Ipanema, Espírito Santo, Guarujá e Serraria parecem tapetes de Corpus Christi, sem tinta e serragem.

Como numa inspirada canção de antigamente, nós, os caminhantes, pisamos distraídos nas pétalas sem perceber que a ventura desta vida é o caminhar – e não exatamente o caminho.


29 de agosto de 2015 | N° 18278 
DAVID COIMBRA

Cuidado com os Ubers


Sou usuário do Uber, aqui em Boston. Hesitei ao fazer essa confissão. Temo que, ao chegar ao Brasil, seja espancado por taxistas em fúria. Justo eu, tão amigo dos taxistas.

Duvida? Pergunte ao Mauro, do Taxitramas. Ao Jeferson, do aeroporto. Ao Luiz Carlos, da Azenha.

Já escrevi muito sobre taxistas. Até os 40 anos, só andava de táxi. Não tinha carro. Lembro de uma vez em que entrei num táxi no ponto da Botafogo e senti um cheiro estranho. Fiquei farejando o ar. Era um odor poderoso. Denso. Que se sentia na boca e provocava certa náusea.

– O que há com teu carro? – perguntei ao motorista.

– Não é o carro – ele respondeu. – Sou eu – e abriu a boca e mostrou a língua vermelha, onde duas elipses brancas dançavam em bolhas de saliva. – Mastigo alho todos os dias – ajuntou, com orgulho, e explicou: – Pra evitar gripe.

Ao fim da angustiante corrida, tive de ser sincero: – Não leva a mal, mas é melhor ficar gripado.

Outro taxista que conheci, bom sujeito, certo dia, ao me acomodar no banco do carona de seu carro, a primeira coisa que ele disse, antes mesmo de me cumprimentar ou de perguntar para onde queria ir, foi: – Minha mulher me traiu.

Aquela informação desferida assim de inopino, feroz e veloz feito um tapa, me deixou perplexo. O que dizer para um homem que lhe atira um peso desses no colo? Durante todo o trajeto, ele descreveu os pormenores do caso. Tratava-se de um clássico: ele a flagrou se refocilando na cama com um amigo.

De alguma forma, aquilo me comoveu: afinal, o taxista confiara em mim. Só que, no dia seguinte, um colega veio contar:

– Sabe que hoje entrei num táxi e o motorista saiu me dizendo que é corno?

Seria o meu corno? Era. Nos dias subsequentes, várias pessoas me relataram que elas também serviram como confessoras do taxista traído, o que me deixou um pouco decepcionado com minha capacidade de despertar confiança nas pessoas.

Mas essas são apenas histórias curiosas. O que importa é que sou amigo dos taxistas, e já fui salvo por alguns deles. É uma categoria que aprecio. Quando me valho do serviço do Uber, e o faço com frequência, não é por desgostar dos taxistas. É porque a corrida em geral é mais barata, porque os carros são melhores e, o que mais me interessa, quando chamo um motorista, ele chega antes que eu possa dizer Cucamonga.

Além do Uber, existe outro serviço semelhante por aqui, o Lyft. O nome da empresa é uma brincadeira com um dos termos em inglês para “carona”: lift. Sem ipsilone.

Essa história de economia compartilhada está se espraiando devido às facilidades da internet. Por exemplo: em algumas cidades americanas, cozinheiros amadores anunciam, por meio de sites, que vão preparar um jantar. Os candidatos a comensais conferem o horário, o preço e o cardápio. Se gostarem, se inscrevem. O jantar é servido na casa do cozinheiro. É o Uber dos restaurantes.

Nós, jornalistas, também temos nossos Ubers. Algumas lideranças da categoria lutam para que o diploma universitário seja obrigatório para o exercício da profissão. Perda de tempo. A sua faxineira, se quiser, faz agora mesmo um jornal na internet. Para isso, só precisa de um celular e de um laptop. Ou, pensando bem, só de um celular.

Não há como refrear o movimento natural das pessoas de ganhar a vida fazendo o que querem ou o que gostam de fazer. Teremos todos de nos adaptar. Os Ubers vêm aí.



29 de agosto de 2015 | N° 18278 
CLÁUDIA LAITANO

Cidades invisíveis


Acaba de ser lançado no Brasil pela editora Carambaia, em edição de luxo e numerada, o livro Salões de Paris, volume que reúne as crônicas mundanas de Marcel Proust (1871-1922). Publicados originalmente em jornais, muitas vezes sob pseudônimo, para não queimar o filme do aspirante a escritor sério, os textos falam de moda, costumes e maledicências cotidianas em geral, mas também de arte, literatura e política – nada muito diferente do que os cronistas de amenidades fazem hoje em dia, com um pouquinho mais de estilo talvez.

O escritor aproveitaria muito dessa rotina de locomotiva social (nunca teve um emprego fixo na vida) para recriar o ambiente onde se movem os personagens de sua obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido. No livro, as idiossincrasias da aristocracia francesa do final do século 19 ganhariam densidade e profundidade psicológica. 

O narrador já não era mais o garoto deslumbrado com duquesas, barões e seus salões refinados, mas um homem maduro lidando com as perdas e a decadência que o tempo costuma impor. Viu nobres decaírem, novos ricos ascenderem, mulheres lindas ficarem caducas, homens invejados tornarem-se figuras dignas de pena. Tudo o que um dia fora sólido desmanchava-se no ar – e em breve duquesas, barões, seus criados e ele mesmo estariam todos juntos embaixo da terra.

O tempo achata tudo o que não é presente ou futuro em uma única dimensão – das pirâmides do Egito à casa da nossa infância. Por conta disso, a Paris da juventude de Proust e a Porto Alegre da minha dividem hoje o mesmo continente imaginário. Há pistas nas cidades que as substituíram, mas boa parte delas se perdeu, morreu ou foi derrubada (muito mais aqui do que lá, infelizmente). 

Foi o que pensei nesta semana enquanto assistia ao documentário Um Filme sobre o Bom Fim, do diretor Boca Migotto. A certa altura da vida, percebemos que os cenários da nossa juventude vão desaparecendo, como uma estampa em um tecido exposto muito tempo ao sol. No caso do meu Bom Fim, o Escaler, a rádio que deixou de existir, o cinema que fechou as portas, tudo isso permanece arquivado na memória afetiva de muita gente, mas está desbotando.

No final de Em Busca do Tempo Perdido, o narrador percebe que só há um jeito de manter vivos para sempre os salões mais chiques de Paris – assim como duquesas, barões e a sua juventude: transformando as memórias individuais em patrimônio coletivo. Um Filme Sobre o Bom Fim faz mais ou menos isso por aquela Porto Alegre ingênua e rebelde dos anos 80. A nostalgia do espectador talvez seja menos do bairro do que de si mesmo. Como todas as nostalgias, essa é também apenas de fachada. Mas não é sempre que um filme pode prometer para boa parte do seu público: acomode-se na poltrona, abra os olhos e volte no tempo.

29 de agosto de 2015 | N° 18278
INFORME ESPECIAL | Tulio Milman

AS VOZES


No começo, me senti como se estivesse traindo uma tradição quase sagrada. Verdade da infância: é falta de educação cantar à mesa. Sempre fomos muito musicais, mas não entre garfadas de arroz e mordidas no bife.


Cresci, virei pai. Então, um dia, minha primeira filha, já com dois anos, começou a cantar no meio de um almoço. A voz lá de dentro me alertou: “Cantar à mesa é falta de educação”. Cheguei a abrir a boca.

Mas optei pela subversão. E disse: “Aqui em casa, sempre pode cantar à mesa”. Todos concordaram. Até hoje é assim. Alguém engata uma música. Qualquer música. Rihanna, Moraes Moreira, Oswaldo Montenegro, Foo Fighters, Dona Aranha, Anitta. Quem sabe a letra segue.

Minha ruptura não foi adolescente. Não tem mais graça nem sentido desafiar autoridade ou tradição só para ter certeza de que eu sou eu mesmo.

No átimo que antecedeu a pequena revolução, pensei que a tristeza chega sem pedir licença. E, se ficar triste não é falta de educação, ficar feliz também não pode ser. Cantemos.

Sempre ouvi, dos professores e dos pais, que a hora do tema é uma hora de silêncio e concentração. Que é preciso um lugar isolado do mundo para estudar.

Quando minha filha mais velha era bem pequena, seguíamos essa regra. Que não é errada e nem merece ser totalmente desprezada. Mas aí, um dia, olhando o mundo em volta, vi que os desafios mudaram.

Fui visitar, alguns anos atrás, o templo budista de Três Coroas. Nosso guia falava alto. Vi algumas pessoas meditando e perguntei: “Não estamos atrapalhando?”. O guia, sereno e seguro, explicou: “O desafio deles é meditar até no meio do caos”.

Quem tem filhos sabe. Numa tela, eles conversam com os amigos. Na outra, assistem a alguma série de TV. A música nos fones. Um livro aberto na frente. Um caderno na outra mão.

Estudar e fazer tema não são mais tarefas isoladas do mundo. O importante é fazer bem feito. E se isso for na sala, no quarto ou no parque, tanto faz. Se houver música ou WhatsApp com os amigos, ok. Porque a vida é assim. Multifocal, multitela, multitudo.

Casa dos pais: uns dizem que a gente sempre volta, outros que a gente nunca sai de verdade. São essas vozes que nos guiam tantas vezes, mesmo que a gente não saiba. E, se uma delas me dizia que é feio cantar à mesa e que lugar de estudar é no quarto, uma outra, mais suave, me acolhia: “Pode questionar, pode questionar”.

Essa é a regra de ouro. E, no fundo, eu sei. Todas essas vozes são a mesma voz.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015


Jaime Cimenti

Os cinemas de Porto Alegre, por Luiz Carlos Carrion


Quem gosta de cinema - especialmente os porto-alegrenses, habitantes de uma cidade absolutamente cinemeira - não pode deixar de curtir o e-book da Edipucrs Cinemas de Porto Alegre, do jornalista, articulista, pesquisador cinematográfico e membro do Centro dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro Luiz Carlos Carrion. A obra resgata a história do cinema em Porto Alegre, Região Metropolitana e Interior do Rio Grande do Sul, no período que vai de 1896 a 2014, com dados, gráficos, 170 ilustrações, depoimentos e textos opinativos de profissionais ligados à área.

Apaixonado pela sétima arte há décadas, Carrion, desde 1978, colabora com jornais e revistas, atua em várias frentes e, entre outros trabalhos relevantes, publicou, pela Editora Tchê, em 1987, o livro Festival de Gramado - Os primeiros quatorze anos. Carrion segue trabalhando e batalhando pelo cinema, acompanhando as modificações nas filmagens, nas salas e nas relações do cinema com a comunidade.

O e-book tem prefácio de Mario Luiz dos Santos, empresário de cinema, e textos de apresentação de Hélio Nascimento, crítico de cinema do JC; Ricardo Difini Leite, diretor do GNC Cinemas e presidente da Feneec; e do romancista Luiz Antonio de Assis Brasil. Hélio Nascimento escreve: "O livro de Carrion, integrado por levantamentos das salas existentes em Porto Alegre e no Interior do Estado e por depoimentos de pessoas ligadas ao setor, se constitui num painel informativo de inegável valor como fonte de consulta. 

Aqui, os cinemas que desapareceram, os que ainda sobreviveram nas calçadas e os novos que surgiram nos últimos anos, esses últimos ostentando as inovações técnicas tão necessárias. Se o cinema, como dizia Fellini, perdeu o monopólio da imagem em movimento, continua, mesmo assim, sendo uma inigualável forma de espetáculo".

A obra fala do Clube de Cinema de Porto Alegre, apresenta dados e gráficos relevantes, órgãos classistas, Cinema Capitólio e trata, também, do saudoso projeto Rodacine, que marcou época, com milhares de espectadores em muitas cidades gaúchas, na década passada.

O texto do professor e romancista Luiz Antonio Assis Brasil, que está na parte final do volume, ressalta a importância dos cinemas para os porto-alegrenses e a força das memórias que eles trazem, desde os tempos em que se localizavam nas calçadas e faziam parte de uma cidade mais pacata. Os cinemas já eram pontos de referência para a Capital e, na frente e dentro deles, muita vida social, política e cultural acontecia.

O livro de Carrion é referencial para cinéfilos ou para os que pretendem saber ou pesquisar sobre cinemas da Capital e do Interior entre 1896 e 2014. É obra que motivará outras obras, outras pesquisas e estudos sobre o tema apaixonante.

A propósito...

Cinemas de Porto Alegre não é apenas uma grande declaração de amor ao cinema, nem apenas um grande registro de datas, nomes, obras e acontecimentos. É, também, um convite à reflexão sobre a relação entre o cinema e a comunidade, depois que o cinema saiu da calçada, mais democrática, e foi para os shopping-centers, espaços mais elitizados. 

As salas dos cinemas das calçadas eram maiores, o clima e o escurinho para ver a telona eram outros. Os preços - inclusive o da pipoca - não eram tão salgados. Ganhou-se em tecnologia, segurança e praticidade. Mas quem não frequentou os antigos cinemas de calçada deixou de aproveitar muita coisa.

Jaime Cimenti

Romance sobre romance


Nanoromance (Editora Bestiário, 192 páginas), publicação da escritora e professora porto-alegrense Vanessa Silla, é seu sétimo livro e o terceiro da série Nano. Vanessa nasceu em 1961, formou-se em Letras - Tradutor Intérprete pela Pucrs, é professora de inglês, tem especialização em Literatura Brasileira e Mestrado em Escrita Criativa.

Nanoromance é uma narrativa longa sobre o processo de engendramento do texto literário, desde a sua gênese, no mundo das ideias silenciosas, até o encontro definitivo com o papel. A cada capítulo, o texto vai se desdobrando em vários outros e, em um jogo de fragmentos e continuidades, surge o romance, ou, melhor, um meta-romance, um romance sobre romance.

Na apresentação, a poeta e professora-doutora em Teoria da Literatura Gabriela Silva escreve: "o cerne deste romance é a construção do próprio texto, desnudando as emoções e peculiaridades do cotidiano de um escritor. Iniciamos a narrativa dentro do universo particular da narradora: Lyna Luck, uma estudante de escrita criativa, frequentadora de oficinas, que procura a palavra certa para seus textos, a emoção exata para suas personagens e, mais do que isso, busca entender a si mesma nas linhas de suas produções".

Sem calendário, regras muito definidas e sem achar-se uma divindade, a escritora participa do mundo como qualquer mortal, interage com as pessoas e disso tira suas histórias, criando personagens e, ao mesmo tempo, refletindo sobre seu fazer literário. Diferentes narradores, conforme a frequência da narração e o foco de Lyna, vão compor o romance. A visão do escritor sobre si mesmo, sobre seus processos de criação e seus caminhos nos labirintos de imagens e ideias, o trabalho, os amigos, os relacionamentos, as memórias, as redes sociais, as escolhas musicais e leituras estão no cotidiano da escritora, repleto de relações complexas ou simples.

Tem narração em primeira pessoa, contando a história de Arthur e Rita, romance que Lyna se propõe a escrever todos os dias. Tem outra narração na qual Crista conta Mulheres Bovary, romance em 20 capítulos feito a pedido do professor. Lyna transforma-se um pouco em cada uma de suas personagens e vai criando uma linguagem diferente para cada personagem, como deve ser quando se faz boa literatura.

Nanoromance, como se vê, mostra uma narradora experiente, mesclando cenas da vida, personagens, reflexões e como nascem e são estruturadas as histórias, a tal carpintaria. Vanessa trabalha bem a linguagem e as construções literárias, cria personagens verossímeis e sua ficção apresenta pessoas, cenários e situações de nosso tempo, o que sempre credencia ainda mais uma autora.


28 de agosto de 2015 | N° 18277 
MOISÉS MENDES

Mestres


Armou-se um alvoroço na entrada da Redação, em torno de um visitante, quando se iniciava o fechamento da edição de terça-feira. O fechamento é o momento em que ninguém tira o olho do computador. Repórteres e editores afogam a ansiedade vespertina em copões de café preto e muitos têm certeza de que não cumprirão os prazos para entregar as páginas prontas.

No fechamento, as atenções para algo estranho à edição somente seriam catalisadas hoje por uma aparição com o brilho da Carla Bruni. Quando se formou o grupo, com maioria de mulheres, ouviu-se ao longe:

– É o Sarkozy!

Uma cabeça se mexia, ao centro, abaixo do nível das outras cabeças. Alguém com a estatura do Sarkozy, mas não era o Sarkozy. Tratava-se do jornalista e professor Marques Leonam. Marques Leonam é o Buda do jornalismo, a lenda que anda. Raros, em qualquer área, desfrutam de tanta adoração.

Dos jornalistas da Zero, metade diz ter estudado com ele na Famecos/PUC (e metade desta metade pode estar blefando). A outra metade gostaria de ter sido aluna dele.

Leonam é para os repórteres o que Luiz Antonio de Assis Brasil é para os escritores. Quem não estudou com o Leonam ou não participou das oficinas literárias do Assis Brasil é tentado a dizer que um dia conversou com um deles, ou cruzou com os dois na Feira do Livro ou na PUC.

Dizer que foi aluno do Leonam ou do Assis Brasil é um carteiraço. Conto uma história. Há alguns anos, a colega Christianne Schmitt, da Economia de ZH, avaliava candidatos a uma vaga de repórter.

Duas moças ficaram para a final. Uma delas tinha Jornalismo e História e mais doutorado em Antropologia. Falava finlandês e estava aprendendo estoniano. Mas quem ficou foi a outra. A aluna do Leonam. Que pretendia fazer a oficina do Assis Brasil. Na prova de texto, um ex-aluno deles arranca com 1.650 pontos.

Leonam tem discípulos. Eu ouvi alguns dizendo: o Leonam não faria assim, imagina se o Leo- nam visse essa página, o Leonam detesta texto com pirâmide invertida, ou: se o Leonam tivesse nascido nos Estados Unidos, seria maior do que o Truman Capote.

Escrevo e revejo a cena de terça-feira, com as mulheres ao redor do Leonam, que, para completar, ainda é do Alegrete. Um ex-aluno do Leo- nam só baixa a crista um pouco quando tem pela frente um ex-aluno do Assis Brasil. Eles se respeitam. Agora, imagine como teriam sido os ex-alunos do Shakespeare.



28 de agosto de 2015 | N° 18277 
MARCOS PIANGERS

Olha, pai!


Meu filho não sai do iPad. Meu filho não sai do videogame. Meu filho não sai do celular.

Meu filho não sai da frente da televisão. Nossos filhos não saem de dentro dos aparelhos eletrônicos que compramos com dinheiro suado em 10 vezes na loja de departamentos. Nossos filhos lembram alguém?

Lembram nós mesmos. Nós também não saímos da frente do celular. Não desgrudamos os olhos da TV. Estamos sempre no computador. Esses dias, aconteceu a cena mais triste e engraçada: minha filha dizia “olha, pai!” pela décima vez, enquanto eu lia e-mails do trabalho no celular. Ela, então, veio até a minha frente e se abaixou até ficar atrás do celular, de forma a entrar no meu campo de visão. “Só ficando aqui atrás do celular pra você olhar pra mim.”

Foi só mais um tapa na cara do papai, entre tantos que minha filha me dá. Cada tapa desses me faz um pai melhor. Passei a notar em casa, no restaurante, nos almoços de família: as crianças dizem “olha, pai!” o tempo todo. Estão pulando em um pé só, olha, pai! Estão descendo uma rampa correndo, olha, pai! Estão fazendo caretas engraçadas, olha, pai!

Nossos filhos não saem da frente dos eletrônicos porque olhamos pouco pra eles. E, quando pedimos pra que larguem o celular, o iPad e o joystick, é pra que eles comam, ou tomem banho, ou façam a tarefa escolar. Todas, atividades chatíssimas para uma criança. Sair do celular pra jantar, faça-me o favor! Nem você faz isso.

Experimente pedir pro seu filho sair do celular para fazer algo com você. Não uma obrigação, mas alguma coisa divertida. Algo que te faça realmente olhar pra ele, prestar atenção no que ele diz e faz. Experimente estar ali de verdade, sem o celular. De forma que ele não vai mais precisar gritar “olha, pai!”. Porque você já vai estar olhando.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015



27 de agosto de 2015 | N° 18275
EDITORIAIS

SEM TRANSIGÊNCIA COM A CORRUPÇÃO

O ponto mais importante da arguição do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, ontem, foi a garantia de independência do Ministério Público e de que a corrupção continuará sendo combatida, como querem os brasileiros. Submetido ao crivo dos senadores no momento em que as denúncias envolvendo a Petrobras começam a atingir em cheio os políticos, o chefe do Ministério Público advertiu que não há futuro viável se condescendermos com a corrupção. E deixou claro para os senadores que, nesse combate, todos são iguais perante a lei.

A manifestação soa como um alento para o país, pois confirma que as instituições seguem exercendo o seu papel acima de questões pontuais. Não há outra forma de concluir o enfrentamento de um esquema de corrupção como o que está sendo apurado, definido ontem pelo procurador como sem precedentes, a ponto de “roubar nosso orgulho” e de drenar para outros fins recursos destinados a áreas como saúde e educação.

É compreensível o constrangimento de integrantes da Comissão de Constituição e Justiça. De seus 27 integrantes, nada menos de oito titulares e dois suplentes são alvos de investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Operação Lava-Jato. E o questionamento ocorreu às vésperas de novas denúncias envolvendo políticos.

Sob esse aspecto, a sabatina foi importante também pela oportunidade concedida ao procurador-geral de rechaçar ilações alimentadas com o objetivo de enfraquecer o Ministério Público, entre as quais um suposto “acordão” para livrar políticos de denúncias. O país precisa que as instituições preservem sua atuação acima de interesses políticos e partidários, para enfrentar a corrupção com eficiência e transparência.



27 de agosto de 2015 | N° 18275 
CARLOS GERBASE

UM MUNDO FEITO DE TELAS

Houve um tempo em que os humanos não faziam uso de telas. Na verdade, nem de janelas. Vivíamos em cavernas, com uma única entrada, de preferência bem guardada, para evitar a desagradável convivência com os tigres-dentes-de-sabre. Esse tempo durou muito tempo. Milhões de anos. 

O único mundo era aquele que estava bem perto de nós, ao alcance de nossas mãos e de nossos olhos. Não tínhamos história, nem imaginação, nem computadores. Éramos mais felizes? Não sei. Talvez para alguns, que hoje correm nos finais de semana rumo à natureza selvagem (ou seja, um lugar sem sinal de celular), voltar a este estágio da evolução seria uma grande felicidade.

Mas alguém, uns 40 mil anos atrás, provavelmente entediado por uma noite interminável e iluminado por uma fogueira malcheirosa, usou sangue e excremento de morcego para desenhar a silhueta de um cavalo na parede da caverna. E o mundo mudou. 

A primeira tela e a primeira representação do mundo significaram também o nosso primeiro afastamento da natureza, que não estava mais tão perto de nossas mãos e de nossos olhos. Estava na tela. E as telas evoluíram muito rapidamente, com uma proliferação de superfícies e tecnologias de representação, até chegarmos à fotografia, ao cinema, à televisão, ao vídeo digital e ao Facebook. E o homem viu que tudo isso era bom. Será?

“Janelas para o mundo: telas do imaginário” é o tema do 13º Seminário Internacional de Comunicação, que ocorrerá em novembro aqui em Porto Alegre. Gilles Lipovetsky (França), Paul Levinson (Estados Unidos), Liz Evans (Inglaterra), Moisés Martins (Portugal), Phillipe Joron, Patrick Tacussel, Hélène Houdayer, Denis Fleurdoge (todos da França), Fábio Fernandes (São Paulo) e Henri Gervaiseau (São Paulo) tentarão explicar como funciona um mundo em que as telas superam, com larga margem, o contato direto com a natureza, e nosso imaginário é diariamente abastecido por tecnologias que nos conectam com todos, sem tocarmos em ninguém. 

É um encontro acadêmico, mas está aberto a qualquer pessoa interessada em saber pra onde vai o mundo. Porque, como já dizia o poeta: “Pra onde vai o mundo, vai todo mundo”. As inscrições estão abertas. Onde? É claro, na tela da internet: pucrs.br/famecos/pos/seminariointernacional.


27 de agosto de 2015 | N° 18275 
DAVID COIMBRA

Desejo de matar


Outro dia, um americano me contou que o pai dele foi assaltado em Nova York em 1973. O homem ficou tão traumatizado, que nunca mais voltou à Big Apple. Nas suas férias, ele prefere ir para... o Rio de Janeiro! O americano meu amigo disse que vive a jurar para o seu pai que Nova York agora é segura, que ele pode ir lá. Não adianta. O velho só vai para o Rio. Já foi assaltado três vezes em Copacabana, mas volta sempre.

Não me surpreende. A cidade do Rio é como certas mulheres: perigosa, mas sedutora. Cada um que calcule se vale a pena correr o risco.

Neste caso, porém, o que mais me chamou a atenção foi a lembrança de Nova York nos anos 1970. Naquela época, até a Times Square era ameaçadora. Charles Bronson estrelou um filme de ação chamado Desejo de Matar. Interpretava um morador de Nova York que teve a mulher assassinada e a filha estuprada por bandidos. Tornou-se, por isso, um justiceiro. Saía pelas ruas exterminando foras da lei à bala.

Um filme desse tipo nunca será o que se chama de grande arte, mas atende ao apelo do seu tempo. Os americanos, acossados pela violência, também sentiam desejo de matar os bandidos que lhes roubavam os bens e a paz, e assim o filme fez enorme sucesso. Tanto, que Bronson seguiu dando tiros em Desejo de Matar 2, 3, 4 e 5. Só parou 20 anos depois, quando os Estados Unidos mudaram e as pessoas se acalmaram.

O que mudou dos anos 1970 para os 1990?

Os Estados Unidos tornaram-se um país mais seguro. O que parece estranho de afirmar, um dia depois de o mundo ter assistido, perplexo, às cenas dos assassinatos de dois jornalistas da Virgínia. Mas isso acontece porque qualquer estressado pode comprar uma arma nos Estados Unidos, não por ação da criminalidade profissional. Há quase 300 milhões de armas em poder dos cidadãos americanos. Um problema, se você está diante de um maluco que não tem nada a perder.

Ainda assim, o pai do meu amigo poderia passear tranquilamente por Nova York, mesmo tarde da noite, sem correr riscos. Em algumas regiões do país, casas e carros ficam abertos, sem que seus proprietários sintam a menor inquietação. E na comunidade em que moro, onde vivem outras 58 mil pessoas de todo o mundo, o último assassinato ocorreu há nove anos.

Curiosamente, os Estados Unidos também se tornaram mais desiguais, dos anos 1970 para cá. Há maior diferença entre os ricos e os pobres.

Como, então, se deu essa mudança?

Pela lei. Nos anos 1980, Ronald Reagan liderou um endurecimento da lei criminal. Qualquer delito passou a custar 10 ou 15 anos de prisão. Os presídios ficaram lotados. Os Estados Unidos do século 21 têm a maior população carcerária do mundo, com mais de 2,5 milhões de presos. E, claro, o sistema judiciário e a polícia também são aparelhados e eficientes.

Cito tudo isso por perceber que hoje, no Brasil, as pessoas sentem desejo de matar. Linchamentos se multiplicam pelo país, garis jogam carros de atropeladores no Arroio Dilúvio, e, nas redes sociais, a intolerância freme e ruge. Ontem, ante a notícia do assassinato dos jornalistas, comentei que sou contra liberar o porte de armas para qualquer um, e os leitores bradaram que preferem loucos armados a bandidos soltos.

Por que os brasileiros estão assim? Pela mesma razão que os americanos assim estiveram nos anos 1970. Por medo.

Qualquer animal, quando sente medo, transforma-se em fera perigosa. Um rato acuado salta no pescoço do homem que tenta esmagá-lo a vassourada. O medo desumaniza.

Até os que defendem a tolerância e os direitos humanos terão de trabalhar com afinco para que as pessoas deixem de sentir medo no Brasil. Nenhum bom argumento, nenhuma ponderação, nenhuma racionalização jamais será maior do que o desespero.