sábado, 8 de agosto de 2015



09 de agosto de 2015 | N° 18253 
ANTONIO PRATA

Insensatez

Quinta à noite, desanimado, o pensamento tropicando pela vasta terra de ninguém surgida entre as fileiras do petrolão e as trincheiras do golpão, botei meus fones no ouvido e saí pra correr. Não tinha dado três passos e o shuffle, este pequeno exu eletrônico cuja missão, nas entranhas metafísicas do microchip, é brincar com nossos humores, mandou Inútil, do Ultraje a Rigor.

O shuffle sabe das minhas inclinações políticas, conhece meus estados de espírito – do contrário, não poderia montar set-lists que manipulam, com tanta maestria, os batimentos do meu coração. Foi só pra tripudiar, portanto, que neste momento em que espremo o bagaço da esperança atrás das últimas gotas de glicose, ele me joga esta pá de cal (engraçada, vá lá, mas de cal, mesmo assim) em qualquer possível fé no futuro. O pior é que ando me sentindo tão 7 x 1 que, em vez de repudiar os versos, apertei o passo e saí trotando conforme a música, amaldiçoando de Cabral às cabriolas do Eduardo Cunha, mandando às favas tudo o que se passou no meio.

Já estava quase decidido a ir correndo pra Vladivostok, pra Pasárgada ou pro Beleléu, quando o shuffle – que, como todo exu, é dado a súbitas oscilações – resolveu me resgatar das profundezas do pessimismo, emendando Inútil com Insensatez, do Tom Jobim – se não morri de embolia na subida instantânea, foi por milagre.

Tom Jobim sempre teve o poder de restaurar a minha fé no Brasil – e, de quebra, na humanidade. Eu posso estar no semiárido nordestino ou na pleniárida Santo Amaro: vem uma lufada de brisa fresca direto do Jardim Botânico, somem a seca e os fios elétricos, o Borba Gato e os urubus, ouço uns passarinhos cantando e vejo uma água cristalina – não sei se é um riacho na Floresta da Tijuca ou um gim tônica na mão do Vinicius de Moraes. E eu que era triste, descrente deste mundo, em dois acordes já me esqueci do Eduardo Cunha, ignoro por completo o que seja um “pixuleco”, estou caminhando sob chapéus de sol, descalço, ou sentado no Antonio’s, entre Tônia Carreiro e Leila Diniz.

Vinicius – “O branco mais preto do Brasil” – deve ter seus contatos com a entidade do iPod, pois ouviu meus pensamentos e conseguiu se meter logo depois do amigo Tom, puxando um Canto de Ossanha, acompanhado por Baden Powell. A partir daí, o exu-monta-lista se empolgou e me brindou com um coquetel levanta defunto de música popular brasileira: mandou Umbabarauma, do Jorge Ben, Do Leme ao Pontal, do Tim Maia, Back in Bahia, do Gil, 1 x 0, do Pixinguinha, Menina, Amanhã de Manhã, do Tom Zé, Sonífera Ilha, dos Titãs, Nine Out of Ten, do Caetano e, depois de mais uns 10 hits da mesma estirpe, chamou o Vinicius de novo para declamar Porque Hoje é Sábado.

Não era sábado. Era quinta. Na TV, o governo tentava ocultar os próprios erros. Pelas janelas, brasileiros batiam panela, muitos deles ansiosos para punir tais erros com erros ainda maiores, mas eu não escutava nada daquilo, eu só ouvia os sábios conselhos do exu binário. Quando parei de correr, suado, exausto e quase tranquilo, ele fechou a noite com um pequeno milagre umbandofônico, saltou sozinho da pasta “MPB” pra pasta “Jazz” e me brindou com Here Comes The Sun, na voz de Nina Simone.

A noite tá escura, pessoal, mas há de clarear.