05 de dezembro de 2016 | N° 18706
PERIGO NO PRATO
MAL INVISÍVEL
Cada vez que você come salada com pepinos, cenouras, alfaces e pimentões ou saboreia morangos na sobremesa pode estar ingerindo doses homeopáticas de produtos tóxicos. Parcela das verduras e dos legumes vendidos na Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), maior entreposto de hortifrutigranjeiros do Estado, tem agrotóxicos acima do recomendável, inadequados para determinadas culturas ou proibidos no Brasil.
É um mal invisível na mesa dos gaúchos.
Para eliminar pragas nas lavouras, existem agroquímicos permitidos, até certo limite. Outros, muito perigosos, banidos em vários países do mundo, são proibidos no Brasil. É aí que o descaso com a saúde alimentar começa. Sem orientação técnica ou por má-fé, agricultores contrariam regras estabelecidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que deve zelar pela segurança dos produtos que consumimos.
Repórteres do Grupo de Investigação (GDI), formado por jornalistas do Grupo RBS, descobriram que um acordo entre autoridades que pretendia melhorar a qualidade de hortifrútis ofertados na Ceasa tem sido tratado com desleixo.
Para conferir o grau de contaminação, a reportagem contratou o Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas (Larp), do Departamento de Química da UFSM, um dos mais reconhecidos do Estado, para analisar produtos vendidos na Ceasa e que vão parar na sua mesa. Repórteres compraram frutas e verduras que os gaúchos comem no dia a dia – pimentão, moranguinho, pepino, cenoura e alface.
Os testes do Larp mostraram problemas graves em quase metade da amostra: nove dos 20 produtos estavam contaminados por agente químico em nível acima do que a lei permite, continham pesticidas não autorizados para o tipo de alimento, apresentavam agente químico proibido no Brasil e até veneno sequer registrado no país.
CONSUMO NO LONGO PRAZO TRAZ RISCO DE CÂNCER E OUTROS MALES
Alimentos com agrotóxicos acima do limite ou proibidos podem provocar doenças graves como câncer e alterações hormonais, além de má-formação em bebês das mães que ingerem esses produtos.
– Consumimos agrotóxicos mais do que o permitido. Estamos todos em risco – afirma Solange Cristina Garcia, doutora em Farmácia pela Universidade de Düsseldorf, na Alemanha, e responsável pelo Laboratório de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRGS.
O perigo identificado pelo GDI é de conhecimento do Estado pelo menos desde 2012. Naquele ano, um acordo entre autoridades e o Ministério Público estabeleceu que seriam realizados testes periódicos em produtos comercializados na Ceasa. O objetivo era garantir a venda de frutas, verduras e legumes dentro dos padrões da Anvisa. O pacto, porém, nunca foi cumprido como deveria. Até agricultores condenados pela Justiça pelo uso irregular de agrotóxicos seguem vendendo as mesmas variedades contaminadas. E o descontrole e a impunidade tornaram-se generalizados:
– Podemos ter a ideia de que 40% das amostras são problemáticas no comércio. Não é só na Ceasa. De modo geral, é no Brasil – diz a promotora Caroline Vaz, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Consumidor do Ministério Público.
A facilidade na compra de agrotóxicos usados para acabar com pragas, dentro e fora do país, potencializa o descontrole. A reportagem foi ao Paraguai e ao Uruguai e comprovou que não há dificuldades em adquirir venenos nesses países – o que é proibido pela lei brasileira – e contrabandear a carga ilegal. Em Viamão, na Região Metropolitana, o GDI flagrou agropecuárias oferecendo produtos restritos e sem receituário – o processo deveria ser semelhante ao da compra de medicamentos controlados.
Repórteres mergulharam nesse assunto complexo nos últimos três meses, leram dezenas de normas técnicas, entrevistaram pesquisadores e buscaram explicações das autoridades para a cadeia de negligência e impunidade. Também foram atrás de exemplos de iniciativas de controle que deram certo em outras partes do país e de alternativas para reduzir o perigo dos agrotóxicos nas lavouras.
Os resultados de uma das mais profundas reportagens sobre os caminhos dos agrotóxicos até o prato dos gaúchos serão contados nesta série, que se inicia hoje. O conjunto de informações que será apresentado ao longo da semana ainda será tema de um Painel RBS, com o objetivo de promover debate entre especialistas, autoridades e sociedade sobre o perigo que ronda o prato dos gaúchos.