terça-feira, 10 de outubro de 2017



09 DE OUTUBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

Eles não têm amor

Fiquei pensando se deveria escrever esta crônica. Fiquei pensando se conseguiria escrever esta crônica. Quando começava a escrevê-la, sentia-me mal. Hesitei muito. Mas vou em frente.

Meu avô, o velho sapateiro Walter, dizia uma frase sempre que alguns cometiam maldades contra outros:

"Eles não têm amor, David".

Isso valia tanto para atrocidades como para trabalhos malfeitos. Entendia perfeitamente o que ele queria dizer com aquilo. É algo óbvio, quase físico, quase matemático: se você não tem um determinado bem, você não poderá dá-lo.

Você me pede um milhão emprestado. O que posso lhe dizer? "Lamento, parceiro, mas não tenho um milhão. Vá falar com o Geddel".

Com o amor é a mesma coisa: você só pode dá-lo se tiver. E só terá se, um dia, tiver recebido.

Esse amor amplo a que se referia o meu avô é aquele que canta Caetano, interpretando Peninha: "Quando a gente gosta, é claro que a gente cuida".

Um teorema: você ama; logo, você cuida.

O problema é que esse estoque de amor você só o faz enquanto é criança. Depois da adolescência, não há mais lugar nos depósitos do espírito, eles já estão cheios do que foi colocado lá, seja amor, seja desprezo, seja violência. É isso que você armazenou. Fim.

Aí está a fonte de toda a crueldade e também de toda a generosidade, de toda a confiança e de toda a insegurança, do bem e do mal: você só dá o que tem e você só tem se tiver recebido durante o período de estocagem, a infância.

Fiz essa tergiversação propositalmente, porque é difícil para mim entrar no assunto da crônica e porque era preciso sustentar o que estou para dizer.

Falo do monstruoso crime da creche de Minas Gerais. Um homem enlouquecido jogou álcool em dezenas de crianças pequenas, matou algumas, mutilou outras tantas.

Pelo menos oito criancinhas de quatro anos de idade morreram queimadas, além de uma professora que lutou contra o assassino, e ele próprio. Muitos outros meninos e meninas estão internados em hospitais. A mãe de um deles, de oito anos de idade, foi entrevistada pelo Jornal Nacional. Ela estava na sala de espera de um hospital. Seu menino teve 80% do corpo queimado e, segundo ela, está irreconhecível.

Quando a reportagem terminou e a imagem voltou para o estúdio do JN, a apresentadora chorava.

Eu, da mesma forma, sentado no sofá da minha sala, não consegui assistir ao jornal até o fim, tamanha a angústia que me acossou ao pensar naqueles pequenos inocentes sofrendo sem saber por quê.

Dias antes dessa barbárie, outro louco acionou uma metralhadora contra uma multidão, matando dezenas de jovens e ferindo centenas, em Las Vegas.

E a cada semana ficamos sabendo de selvagerias cometidas por terroristas na Europa, pela soldadama de algum país do Oriente Médio, por traficantes no Rio ou no México.

Qual é a extensão da loucura? Uma pessoa que parecia saudável durante toda a sua vida pode se transformar, de repente, em uma aberração? Mesmo um louco não leva, impressos na alma, certos limites?

Qual é a extensão da maldade? Até que ponto a crença, a ideologia ou a ambição vulgar pode levar um ser humano?

Não tenho ideia de quais seriam essas respostas, mas sei qual é a origem do Mal: é a falta de amor.

Cada criança que está sendo brutalizada hoje, no Brasil, terá apenas brutalidade para dar quando se tornar adulta. Cada pedaço de ódio que for estocado um dia será liberado.

"Eles não têm amor, David", repetia o velho sapateiro Walter. É preciso lhes dar amor, é preciso cuidar das crianças. Para que, mais tarde, outras crianças não tenham de sentir dor.

david.coimbra@zerohora.com.br