quarta-feira, 11 de outubro de 2017


11 DE OUTUBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

Che Guevara: santo ou monstro


No lugar onde morreu, Che Guevara é santo. Sei, porque estive lá. É a aldeia de La Higuera, que se encarapita no alto dos Andes bolivianos, próximo à cidadezinha de Vallegrande.

Em La Higuera, Che foi morto com uma rajada de metralhadora em 9 de outubro de 1967. Há 50 anos e dois dias, portanto. Seu corpo permaneceu algum tempo no chão, vigiado por soldados bolivianos, que depois o removeram para a lavanderia do hospital de Vallegrande.

A ideia dos militares era expor o cadáver do Che para que a população comprovasse que ele fora morto e, assim, acabar com o mito do guerrilheiro idealista que lutava pela redenção dos pobres.

Produziram efeito contrário.

As pessoas entravam na lavanderia e viam o Che de olhos abertos e o torso um pouco erguido, apoiado em uma escora, como se estivesse prestes a se levantar. Ficaram impressionadas. Alguns diziam que os olhos do Che os seguiam para a esquerda ou para a direita, para a frente ou para trás, como os da Monalisa no Museu do Louvre. Outros ressaltaram a expressão serena de seu rosto. E as mulheres, todas elas, se emocionaram com sua beleza.

Antes de ser enterrado clandestinamente na pista do aeroporto de Vallegrande, Che já estava sendo venerado na região. Mais algum tempo e ele viraria objeto de culto. Naturalmente - Che foi a coisa mais importante que aconteceu naqueles ermos do mundo antes ou depois de 1967.

Morto ou vivo, o feitiço que do Che emanava tinha a mesma origem: ele era o homem abnegado, que dedicava a vida a valores intangíveis, como justiça e igualdade. A famosa foto de Korda que estampa camisetas e bandeiras de times de futebol mostra exatamente isso: o guerrilheiro que olha gravemente para o porvir, para o mundo ideal, para seus próprios sonhos para a humanidade redimida.

Mas há quem veja no Che o oposto deste herói dos desvalidos. Há quem veja nele um assassino serial, que enfileirava os opositores no paredón, um ditador sem coração, que argumentava à bala contra quem pensasse diferente dele.

Muitos desses, os do Che monstro, irritaram-se com a entrevista que eu e a Kelly fizemos com o Flávio Tavares, no Timeline de segunda passada, a propósito do livro lançado por ele: As Três Mortes de Che Guevara.

Flávio conheceu o Che, entrevistou-o em 1961, em Punta del Este. E é claro que o admirava. Porém, mais do que tudo, Flávio entende que o Che foi sobretudo um homem de seu tempo. De certa forma, um produto da Guerra Fria.

Che não era um monstro. Tampouco era um santo. Che foi, isto sim, um sonhador. Que errou muito, não há dúvida, mas que tentou acertar.

Hoje, o mundo, curiosamente, vive uma nova Guerra Fria. Menos perigosa, talvez, mas tão tacanha quanto aquela em que se empenhavam soviéticos e americanos. Hoje, nem o Che, nem qualquer outro homem ou fenômeno social são vistos sem paixão. Se você não é santo, você é monstro. Cinquenta anos e dois dias se passaram desde que aquela rajada de metralhadora tirou Che da vida para que entrasse na história. E nós continuamos andando em círculos.

DAVID COIMBRA