Lutero e o exílio de Deus
Peter Endig/AFP | ||
Igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, onde Martinho Lutero pregou as 95 teses há 500 anos |
Os clássicos gregos e romanos ilustram o que era a religião dos antigos. Na "Ilíada", os deuses entram na batalha, uns ao lado dos aqueus, outros, dos troianos.
Afrodite é ferida por um humano, Diomedes. A ninfa Tétis acode o filho em apuros, o herói Aquiles, e o presenteia com uma armadura divina forjada pelo olímpico Hefesto. O espírito do rio de Troia, Xanto, dá uma coça no campeão grego, que enchia com cadáveres as suas águas. Os deuses estavam entre os homens e com eles interagiam, o que fazia do mundo um jardim encantado.
O monoteísmo abraâmico começou a expulsar a divindade da Terra, e o movimento iniciado por Martinho Lutero há 500 anos pode ser considerado o apogeu desse processo. Com o reformador alemão, secundado pelo ainda mais radical João Calvino, Deus foi banido de vez do convívio com os homens. Não restou força terrena –sob a forma de santo, espírito ou sacerdote– capaz de restabelecer a conexão mística.
Nessa longa trajetória o cristianismo comportou-se, na sacada do historiador francês Marcel Gauchet, como "la réligion de la sortie [da saída] de la réligion". Os assuntos humanos se emanciparam da lógica religiosa.
Essa sem dúvida é uma forma elegante e plausível de contar uma longa e complicada história, mas é justo acusar também os ruídos ao redor.
O misticismo jamais foi suprimido ao longo da marcha cristã. Veja-se, no universo católico, o fervor do culto mariano, de que a devoção em Aparecida é vigorosa manifestação.
O pentecostalismo das transações misteriosas com o espírito divino é o ramo protestante que mais adeptos arrebata nas nações emergentes. Novas ondas de crenças "pagãs", mesmo entre os mais ricos, instruídos e descolados, parecem pregar a reconciliação do homem com a natureza. O cérebro humano, com toda a sua potencialidade e todas as suas vicissitudes, é bem mais antigo que a mais longeva das grandes religiões.