terça-feira, 31 de outubro de 2017


31 DE OUTUBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

A feiticeira e o comunista


Certa vez, uma amiga da Marcinha recebeu flores de um admirador. Ele se identificava em um pequeno cartão, onde escreveu a seguinte dedicatória:

"Para as batatas da perna mais bonitas da cidade".

A amiga da Marcinha ficou furiosa:

- Onde já se viu dizer isso para uma mulher?!

Lembro sempre dessa história quando alguém fala em panturrilhas. O que não é tão raro: talvez você se espante em saber, mas há inúmeros apreciadores de panturrilhas por aí, e não é de hoje. Quando eu era guri, um amigo me disse que adorava as batatas das pernas da Elizabeth Montgomery, atriz da série de TV A Feiticeira.

Gostava daquele seriado, embora preferisse Perdidos no Espaço. Havia uma brincadeira que fazíamos: grudávamos os cotovelos no corpo, balançávamos os antebraços e repetíamos, com voz pretensamente metálica:

- Perigo! Perigo! Uma velha sem umbigo!

Uns diziam "imbigo".

Era para ser uma paródia do Robot, o melhor personagem do seriado. Isso mostra como Perdidos no Espaço era popular e como nós éramos bobos. Menos, claro, o fã das panturrilhas da feiticeira. Esse sabia das coisas. Depois que ele falou aquilo, passei a reparar nas pernas de Samantha, o nome da protagonista no seriado. 

Vez em quando, ela aparecia em breves minissaias, sobretudo quando interpretava sua própria irmã, Serena, que, ao contrário de Samantha, era rebelde e insinuante. Serena era rock and roll, definitivamente. Como Serena, a loira Elizabeth metia-se debaixo de uma peruca preta e mandava um olhar selvagem para a câmera. Meu amigo estava certo: ela tinha pernas encantadas. Mas a melhor descoberta foi outra: foi de que a feiticeira má era mais interessante do que a boazinha.

Falo de Elizabeth Montgomery porque hoje é o dia de Halloween, data que agora é comemorada inclusive no Brasil. Essa é uma das festas que mais entusiasmam os americanos. Eles decoram as casas com motivos de horror e saem às ruas dentro das fantasias mais surpreendentes - outro dia, vi um cara vestido de mão amputada.

Aqui, nesta região do país, eles ficam ainda mais empolgados no 31 de outubro, porque a 25 minutos de trem do centro de Boston está Salem, a cidade das bruxas. No Halloween do ano passado, fui a Salem e quem lá encontrei? Ela mesma, Elizabeth Montgomery, só que em forma de bronze, em uma estátua que ergueram em sua homenagem no centro da cidade. Elizabeth está caracterizada de feiticeira, sorrindo, sentada em uma vassoura voadora.

Achei muito simpático da parte do povo de Salem prestar esse preito à feiticeira mais famosa da TV - ela visitou Salem, quando o seriado ainda estava em exibição, e lá gravou alguns episódios.

Salem poderia se envergonhar de ser a cidade das bruxas. Não foi bonito o que aconteceu para que o lugar ganhasse essa alcunha. Mas, não. Salem se orgulha e disso faz quase que sua razão de existir. É assim, a História não se apaga. A História os povos estudam, cultivam, aprendem com ela. E, às vezes, até lucram, como no caso de Salem.

Temos nós, em Porto Alegre, a nossa história. Não há por que negá-la. Por que mudar o nome da Avenida Castelo Branco? Por que apagar o registro do aluno Carlos Lamarca do Colégio Militar? E, finalmente, por que não ter um memorial a Luiz Carlos Prestes?

Prestes é personagem importante do Brasil e de Porto Alegre. Deve ser lembrado por tudo o que fez. De bom e de ruim. Conhecê-lo, conhecer sua história e o que representou não significa concordar com ele ou promover suas ideias. Significa que você sabe como foi o passado, talvez até o entenda. E, por entendê-lo, pode dizer se quer repeti-lo. Ou não.

DAVID COIMBRA