A BANALIDADE APARENTE
Esta cena terá sido vista no Egito, na Babilônia, em Atenas e Alexandria, na Roma pagã e cristianizada, em todos os séculos que separam o passado desta Porto Alegre em que cinco amigos, reunidos em torno da mesa, conversam e esquecem que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, como queria Bandeira, porque logo um lê para os outros uma crônica do Rubem Braga, e sopra uma brisa rara para janeiro, e sobre o tampo estão carnes dignas dos antigos holocaustos, e o chope nos faz lembrar Copacabana - e Rubem Braga.
O momento é banal e sublime, estranha mistura que está no coração das grandes horas passadas neste mundo. Cinco amigos, livres da eficiência, da dose de vanglória necessária na profissão, da guarda erguida pelo convívio com os outros, estão ali, à mesa, para fazer ruir as teses do gene egoísta, do homem lobo do homem, da desconfiança como base de todas as relações. Há um silêncio confortável, a conversa é fluida, vez ou outra eclode uma discussão bizantina (supondo que os bizantinos inventaram o papo de boteco).
Se invejam alguma coisa, é não serem gentis-homens do século 19, a jantar todos os dias reunidos, nós que o fazemos tão poucas vezes ao ano. (Um governo decente já teria inventado a bolsa-amigo). Banais e sublimes. Capazes de perdoar aquele que ébrio dorme enquanto o outro segue lendo a crônica do Rubem Braga, para depois nos apiedarmos do que amanhã trabalhará cedo, fazendo vir antes a conta e o preço do real.
Por trás dessa aparente banalidade, no entanto, estão vitórias humanas, bem raras de alcançar: As vitórias da amizade. Pois primitivas como as primeiras criaturas irmanadas na caça ou nas tarefas domésticas, tornadas mais leves em sua função. Pois sofisticadas, a ponto de formarem laços resistentes às distâncias do tempo e da geografia. É também a vitória sobre o sangue, posto que a amizade é amor familiar sem as cobranças e expectativas da família.
É também a vitória sobre o interesse, pois só nos livros de pilantríssima autoajuda faz-se um amigo por utilidade. É, por fim, a vitória de um encontro inexplicável, nós que tanto buscamos o afeto e o malversamos em nossos desencontros. É Montaigne dizendo que amava o amigo por ser o amigo apenas quem ele era. É o platonismo que consagramos ao intuir que tal invenção, de tão perfeita, só pode ser uma coisa incontornavelmente sobre-humana.
PEDRO GONZAGA