sábado, 3 de março de 2018


03 DE MARÇO DE 2018
J.J CAMARGO

A AMEAÇA DA INUTILIDADE


Lembram de quando surgiram os programas de xadrez no computador e os enxadristas desafiavam a máquina furiosamente?

Pois é, modernamente, a brincadeira perdeu a graça porque, se você, um enxadrista brilhante, vencer uma partida, só tem uma recomendação: pare de usar programas ultrapassados, porque os atuais são imbatíveis. Se a interferência fosse só com a diversão, até poderia ser divertido, mas e se a IBM produz um programa de assessoria jurídica com desempenho 20% melhor do que a sua respeitável e qualificada equipe de advocacia, você vai rir de quê?

E se uma relação de sintomas orientar a máquina ao diagnóstico clínico com uma precisão que raros profissionais conseguirão rivalizar, ainda haverá comemoração porque seu filho, superinteligente, garantiu vaga em uma das 300 faculdades de Medicina espalhadas pelo país?

Encantados com o progresso, fomos assistindo às mudanças com o descompromisso de quem não tem nada com isso, mas ninguém imaginaria que, em 10 anos, a grande Kodak, figurante durante 50 anos entre as 10 maiores empresas do mundo, pudesse ser engolida pelo Instagram, ou que a gigante Blockbuster, a maior rede mundial de locadoras de filmes e videogames, fosse pulverizada pela Netflix. 

Ou que a Uber, sem ter um carro sequer, se transformasse na maior empresa de táxis do mundo. Ou que o Airbnb pudesse, dispensando o custo astronômico da construção de uma unidade do Hilton, por exemplo, assumir em menos de uma década a condição de maior rede hoteleira do planeta sem ter um alojamento que seja. E todos os que descrevem assombrados essas modificações reconhecem que elas estão apenas começando e que não há como ignorá-las ou reprimi-las.

A rapidez das transformações, identificadas como progressos da modernidade, vai em ritmo acelerado, criando um sem número de beneficiados e inevitavelmente outros tantos de excluídos. Com o aumento exponencial da curva de sobrevida da população, prevê-se que o número de banidos do mercado tenderá a aumentar nas próximas poucas décadas, muito provavelmente ultrapassando o dos beneficiados, e, então, teremos infelicidade social. A menos que simultaneamente surjam programas avançadíssimos para domesticar os infelizes, talvez o futuro seja menos festejável do que imaginam os arautos do mundo novo.

Não podemos perder a perspectiva de que a substituição do homem pela máquina só será de fato benéfica se ela, além de lhe trazer conforto, preservar-lhe a utilidade, considerando que o ócio, para um grande percentual dos humanos, é insuportável, mesmo que as condições econômicas se mantenham estáveis.

Quem leu o Sapiens - Uma Breve História do Mundo e depois Homo Deus, de Yuval Noah Harari, com a descrição genial de como chegamos até aqui e o que nos espera nas próximas décadas, deve ter sido invadido pelos sentimentos mais díspares e paradoxais.

Eu não consideraria absurdo que quem virou o século com mais de 60 anos tenha ido dormir com a sensação de que envelhecer, logo agora, talvez não tenha sido um azar tão grande assim.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J CAMARGO