04 DE AGOSTO DE 2018
SINGULAR
TERRA LONGÍNQUA E DE DIFÍCIL ACESSO
Quem nasce e cresce em Walachai carrega essa singularidade que atravessa gerações: para um filho da localidade, o passado jamais é esquecido. É reverenciado.
Basta caminhar na comunidade que um dia foi identificada pelos desbravadores como "terra longínqua e de difícil acesso" - é este o significado do nome, em alemão antigo. O fundador, Mathias Mombach, foi homenageado com o nome da única avenida pavimentada da comunidade. Na mesma via, as casas centenários em enxaimel - técnica trazida pelos imigrantes alemães, cujas paredes são montadas com pilares de madeira encaixados e os espaços entre eles preenchidos com barro ou tijolos - distinguem-se das casas de alvenaria recém construídas. No cemitério, túmulos erguidos ainda no final do século 19, com frases escritas somente em alemão, dividem o mesmo espaço com jazigos recentes.
Se nas ruas e no comércio local o dialeto hunsrückisch - trazido pelos primeiros moradores, há quase dois séculos - segue vivo, dificilmente se encontra alguém que sabe escrevê-lo. O hunsrückisch sobrevive quase exclusivamente por meio da comunicação oral entre os habitantes de Walachai. Palavras em português surgem misturadas em meio aos diálogos - quando não existe tradução para elas.
Nos primeiros 110 anos de existência de Walachai, os imigrantes jamais aprenderam português no povoado. No início da década de 1940, porém, tudo mudou. À época, em meio à II Guerra Mundial, o Brasil declarou guerra contra a Alemanha, e o então presidente Getúlio Vargas assinou um decreto proibindo que se falasse em alemão publicamente em território nacional. Foi a partir da lei que a escola de Walachai passou a ensinar a Língua Portuguesa. Moradores mais antigos contam que quem se negasse a se expressar em português recebia castigo. Poucos aprenderam a se comunicar nas duas línguas. Talvez venha daí o isolamento que por décadas deixou a região ainda mais distante das localidades vizinhas do Vale do Paranhana.
Hoje, a maior parte da população local já se comunica em português por necessidade de adaptar-se à evolução da região e à chegada de moradores de outras partes do Estado. Mas o único lugar da localidade onde o hunsrückisch não é a língua padrão segue sendo a Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Rui Barbosa, que tem, no total, 122 alunos.
Quando cruzam a entrada principal da instituição, as crianças não são proibidas de falarem o dialeto, mas, isso sim, estimuladas a se comunicarem apenas em português. Como em todas as escolas do município, o alemão padrão - que tem diferenças, na comparação com o dialeto - é disciplina regular e praticada em sala de aula uma hora por semana. A atual professora de alemão e ex-diretora da instituição Keina Werle Backes, 34 anos, que morou na localidade por dois anos, recorda que até cerca de uma década os alunos da educação infantil chegavam à Rui Barbosa apenas se comunicando em hunsrückisch.
- Gradativamente, isso foi mudando. Hoje, são exceções os que chegam à escola falando só no dialeto. Acredito que seja porque as mães começaram a trabalhar em outras áreas que não a agricultura, e aí tiveram de deixar os filhos nas creches ou com as tias crecheiras, que falavam português. A escola não proíbe o aluno de falar o hunsrückisch. Porque se expressar na língua materna é sempre mais fácil em momentos de tensão ou quando ocorre, por exemplo, um conflito. O dialeto segue sendo estimulado nas famílias porque os mais velhos não falam português. Por isso, esse alemão segue sendo difundido entre os mais jovens de Walachai - explica a professora.
Preocupada com o futuro da localidade, em 2015 e 2016 Keina propôs aos familiares dos estudantes viagens para outras partes do Estado. Em cada uma delas, fazia questão de convidar os pais para seguirem junto, nos ônibus que cruzavam o Rio Grande do Sul rumo a paisagens até então desconhecidas para todos. Em 2015, com um ônibus repleto de alunos do quinto ano e alguns parentes deles, Keina atravessou 960 quilômetros de ida e volta até São Miguel das Missões para que os moradores assistissem ao espetáculo de som e luz de Natal em meio às ruínas jesuíticas. Saíram de madrugada e retornaram após o evento. No ano seguinte, a professora levou dois ônibus até Pelotas, para visitarem a Fenadoce. Foram mais 760 quilômetros de ida e volta.
- Me chamava atenção o desconhecimento deles sobre o que existe fora daqui. Só viam e ouviam pela televisão e pela internet. Minha ideia sempre foi mostrar o mundo lá fora para que valorizassem a própria comunidade. Em Walachai, os pais passam para os filhos a responsabilidade de preservarem as histórias de suas famílias - justifica a professora.
Mas, diferentemente da explicação de Keina, a agricultora Magdalena Büttenbender Dieter, 60 anos, não sabe para quem deixará as terras que já estão sob os cuidados da quinta geração. As filhas Ana, 23 anos, e Maria Marta, 26, optaram por trabalhar num supermercado de Morro Reuter. Magdalena e o marido, Carlos Leopoldo Dieter, 58 anos, são os únicos responsáveis pela lavoura de aipim e pelo cuidado com as vacas leiteiras. Eles produzem e comercializam queijo nas redondezas. Para ampliar a renda familiar, o casal cuida de um bar no balneário de Rio Loch, que pertence a Walachai, na divisa com o município de Santa Maria do Herval.
Assim como os Berg, a família também segue vivendo nas duas casas construídas pelos antepassados. Uma serve abriga os quartos, e a outra, a sala e a cozinha. Apenas uma operadora telefônica funciona na região. Conectada, Ana sabe direitinho em quais locais da casa o sinal de telefonia fica mais forte: na escada do banheiro e junto à estante do aparelho de televisão.
Na casa dos Dieter o dialeto é a língua falada. Ana prefere responder em português, mas acaba sendo convencida a seguir falando em hunsrückisch.
- Aqui tu tens a tua paz, mas é afastado de tudo. Tenho um carro, e isso facilita a vida para sair de Walachai - conta Ana.
Há dois anos, Magdalena precisou sair da comunidade mais do que gostaria. Ao descobrir um câncer de mama, teve de realizar o tratamento em Porto Alegre, onde segue com consultas de reavaliação. As fortes doses de quimioterapia e radioterapia fizeram com que a agricultora perdesse quase todos os dentes. Hoje, Magdalena pouco sorri por ter vergonha. Mas mantém o bom humor e, principalmente, a força necessária para seguir trabalhando diariamente na lavoura. Sozinha, arranca e carrega até 20 quilos de aipim nas costas numa única ida à plantação. A força e a destreza são tamanhas, que Magdalena nem segura o saco pesado. Coloca-o sobre um ombro, com um dos braços dobrado na cintura. O esforço que precisa fazer para carregar o alimento das vacas a faz caminhar curvada.
- Minha vida é esta e gosto dela. Quero muito que uma das minhas filhas assuma a nossa função, mas sei que elas têm outros planos. Minha esperança é que uma delas mude de ideia - desabafa Magdalena.