quarta-feira, 5 de dezembro de 2018


05 DE DEZEMBRO DE 2018
PEDRO GONZAGA

No café

O som da televisão suspensa chega até a mesa onde trabalho. Alguma dupla sertaneja, com seus nomes intercambiáveis e plenamente esquecíveis, apregoa as vantagens de algum produto. Suponho que seja para o Natal, ao menos soavam uns guizos, é dezembro, não é tão difícil acertar. Mais uma vez o livro no Kindle, A Cultura do Karaokê, uma coletânea de artigos da escritora Dubravka Ugresic, nos quais ela tece uma crítica feroz ao amadorismo e à leviandade do mundo e das artes em nossos dias, naufraga àquela olhada nas redes sociais. 

Nunca uma obra encontrou tão rápido o alvo de seu ataque. Então tento escrever, o caderno de poemas aberto, a crônica mal encaminhada - que fazer se o cheiro do café e o burburinho das gentes me ajudam a pensar -, mas a tevê, mesmo em volume baixo, segue ativa, é preciso ocupar a grade, e nunca fui, não condeno quem seja, mas nunca fui dos que pedem para apagar um aparelho público. 

Por isso, a voz alegre, um quê histriônica, da apresentadora, anuncia o equilíbrio necessário para a refeição perfeita: há de haver (e esta retórica é minha, ou do Padre Vieira), ela disse que tinha que ter uma proteína, um carboidrato, uma fonte de graxa (juro), verdes e roxos. Suponho, porque não vejo o visor, que se trate de carne, arroz, feijão, bife, uma salada com azeite. Em algum lugar nos perdemos na curva. Décadas de trivialidades. Deve ser a ausência de guerras. Se uma viesse, eu não seria alistado. Ao menos não nos primeiros anos, salve, salve, C5 e C6, meus discos rotos pela discopatia. 

A vantagem do raciocínio humano é ser mais livre do que os programas matinais. Não é mau, às vezes, se sentir um pouco inteligente também. O livro da autora croata, retomado de relance, diz: "a Internet pode ser compreendida como um megakaraokê, um lugar com milhões de microfones, e milhões de pessoas correndo para agarrar o microfone e cantar sua versão da canção de alguém. A canção de quem? Isto não é importante: a amnésia é, ao que parece, um subproduto da revolução da informação. O que importa é todos cantarmos juntos". 

Suponho que a televisão seria melhor se chamassem gente como a Dubravka. Antes de uma inútil revolta, sinto meu dedo deslizar pela tela, fotos de belas bibliotecas, merecem muitos corações. Sempre quis cantar I?ve Got You Under my Skin. Sei o cantor, o compositor e até o arranjador. Parabéns para mim.

PEDRO GONZAGA

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