quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


02 DE JANEIRO DE 2019
ARTIGO

O ANO NOVO E AS PALAVRAS


Heitor de Macedo conta uma bela história, protagonizada por Gisela Pankow, psicanalista como ele. Gisela, exercendo a profissão em Paris, aceitou receber, no domingo, um novo paciente. Como muitos franceses, ela atendia em casa, e, ao subir as escadas do seu prédio, acompanhada do homem desconhecido, percebeu que ele desejava matá-la. Mas, como tinha uma larga experiência com psicóticos, esforçou-se para encontrar algumas palavras, em meio ao medo que subia calado com eles. As palavras foram apenas algo como "eu sei que queres me matar". Depois de algum silêncio, o homem pronunciou outras palavras, que confirmaram a suspeita.

Foi aí que, apesar da psicose e do encontro inédito com um feminicida em potencial, Gisela tranquilizou-se, sustentada pela noção de que aquilo que consegue ser dito já não precisa ser feito. Ali estava um homem mais próximo da vida, capaz de dizer o que sentia. Mais do que uma noção, prevista em tantos textos de psicologia, trata-se de uma máxima que encontramos na prática ou na carne do que costumamos chamar de tratamentos, e que não passam de um processo, às vezes longo, de (re) encontrar os sentimentos. E, sobretudo, as palavras para eles, a ponto de o verbo bastar e já não precisar fazer- se carne, por já ser a própria.

A possibilidade de dizer é muito mais do que uma habilidade linguística capaz de nos diferenciar dos outros animais. Ela é a nossa saúde, a nossa sobrevivência física e psíquica. O filósofo Gilles Deleuze foi mais poético ainda:

- A minha vitória é verbal.

Em meio a tantos projetos importantes e construções necessárias, que possamos, em 2019, encontrar cada vez mais palavras. E sem julgamentos apressados, mais ouvidos empáticos para elas. Opiniões, ideologias almejam um mundo melhor, mas podem ser reiteradas, modificadas, aprimoradas, são passageiras, enfim. Dizer, não. E, como disse o poeta Armindo Trevisan, precisamos cuidar das palavras como quem cuida das pessoas. Bem cuidadas, as palavras nos trazem a saúde. E permanecem.

Psicanalista e escritor celso.gut@terra.com.br - CELSO GUTFREIND

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