quarta-feira, 16 de janeiro de 2019



16 DE JANEIRO DE 2019
NÍLSON SOUZA

O amigo do rio

No tempo em que o Guaíba era rio e ninguém questionava sua denominação geológica, cheguei a tomar banho em suas águas, como fizeram no último final de semana alguns ousados frequentadores da nova orla, assoleados pelo que chamávamos naquela época remota de "canícula senegalesca". O rio da minha aldeia - como o Tejo na poesia de Pessoa - pertencia a menos gente, era bem mais limpo e tinha locais verdadeiramente balneáveis, entre os quais um recanto arborizado do bairro Guarujá, onde acampávamos em família nos domingos calorentos. Já nadei naquelas águas, já remei naquelas águas, já pesquei naquelas águas e certamente já bebi muito daquelas águas, o que me torna, como porto-alegrense nato, um parente muito próximo do Guaíba, seja ele rio, lago ou estuário.

Outro dia, inclusive, numa das caminhadas diárias que faço pelas margens da minha infância, fui confundido com um cidadão que se dedica a plantar árvores e flores na orla sul. O jovem ciclista freou na minha frente e me abordou sorridente:

- E aí, tio, continua cuidando das plantas por aqui?

Como já observei várias vezes, e com admiração, o trabalho solitário do veterano plantador, tratei logo de desfazer o engano do rapaz, no mesmo tom irreverente:

- Não sou eu. É outro "véio" parecido comigo.

O jovem desculpou-se, constrangido, e seguiu o seu caminho. Fiquei, então, pensando naquele homem que levanta cedo, carrega um punhado de mudas e algumas ferramentas na mochila, abre buracos em locais estratégicos e enterra cuidadosamente as plantinhas que um dia se tornarão árvores adultas - de cuja sombra ele jamais desfrutará, a não ser que venha a se revelar um fenômeno de longevidade.

Aquele homem, sim, é um amigo do rio.

Nós, outros - os banhistas da nova orla, os caminhantes de Ipanema e tantos outros afilhados ingratos desse mar doce que banha a Capital -, mais o exploramos do que o protegemos. Extraímos dele suas melhores águas e nele despejamos o nosso esgoto. Construímos um muro para mantê-lo distante de nossos medos e pontes para sobrepassá-lo sem molharmos os pés. A nova travessia, pelo que se pode observar na atual etapa de construção, será uma monumental obra de engenharia, necessária ao progresso e desenvolvimento do Estado, mas também outra cicatriz de concreto e ferro na paisagem que a natureza nos concedeu.

Muros e pontes, a velha simbologia da separação e da aproximação entre humanos ganha atualidade nestes tempos trumpianos e de migrações desenfreadas. Os senegaleses, que chegaram às levas ao Estado e à Capital, como haitianos e venezuelanos, também devem estar sofrendo com o nosso calor senegalesco. Pois aproveito para sugerir: recorram ao rio/lago/estuário, caros amigos. Por mais maltratado que esteja, sempre nos oferecerá uma brisa ao final da tarde, acompanhada do único pôr do sol trilegal do planeta.

Nosso Guaíba é nobre e generoso como aquele homem solitário que planta sombras para um futuro que não conhecerá.

NÍLSON SOUZA

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