quinta-feira, 31 de janeiro de 2019



31 DE JANEIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O homem bom

O Maurício Saraiva contou uma história bonita no Sala de Redação, outro dia. Contou que um ouvinte da Gaúcha teve um AVC e ficou em coma por algum tempo. Ao finalmente despertar, as duas primeiras palavras que o acamado pronunciou foram: "Maurício Saraiva".

Dito isso, o Maurício completou que não se gabava do ocorrido, mas ponderou que o episódio mostrava a importância do trabalho da emissora e tudo mais. Enquanto ele tecia esse arrazoado, o Rafael Malenotti, do outro lado da mesa, enxugava uma lágrima fortuita que lhe escorrera bochecha abaixo.

A reação do Malenotti me tocou ainda mais do que a história do Maurício. Porque, entenda, o Sala de Redação é mais ou menos a reprodução de uma mesa de bar, em que amigos discutem futebol, contando vantagem, fazendo visagem e passando rasteira, como diria o Ary Barroso.

A conversa de bar é uma arte, pena que desprezada nestes nossos tempos ásperos. Aliás, houve época em que a chamada "arte da conversação" era estudada, valia livros e compêndios. Foi no século 18, na França. O crème de la crème da sociedade se reunia em salões, em geral comandados por grandes damas. Essas mulheres eram cultas e habilidosas no trato pessoal. Deviam valer-se de coqueteria sem apelar para a vulgaridade, deviam ser atenciosas sem serem pegajosas, deviam saber escolher cada convidado na medida precisa para que a noite fosse sempre interessante, sem jamais perder a animação.

Vários autores franceses clássicos descrevem esses salões. Nas cartas de Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, os missivistas conseguem fazer o leitor sentir o clima sensual e levemente cruel das relações daquela elite pré-revolução. E mesmo depois, quando Napoleão já era o conquistador da Europa, os russos faziam o possível para imitar os franceses. Guerra e Paz, de Tolstoi, mostra a nobreza russa falando francês nos palácios de São Petersburgo e se guiando pelas mesmas normas de conduta dos antigos salões de Paris.

Nessas noitadas, alguém que sabia conversar era mais valorizado do que quem tem mais de 1 milhão de seguidores no Twitter hoje em dia.

Quando o mundo se tornou menos formal, a boa conversa dos salões foi transferida para os bares. Você leu Paris é uma Festa, de Hemingway, ou assistiu a Meia-Noite em Paris, de Woody Allen? São histórias de bares, de excitantes conversas em bares, travadas por Fitzgerald, Dalí, Buñuel, Picasso, Cole Porter, Josephine Baker.

No Brasil, pense na zona sul do Rio e em mesas frequentadas por Vinicius, Tom, Chico, Paulo Francis e Millôr.

Essa é a ideia de programas como o Sala de Redação e o Pretinho Básico: amigos em torno de uma mesa de bar. Os ouvintes acompanham nossa conversa e esperam ditos espirituosos, tiradas engraçadas, frases de estilo, opiniões diferenciadas ou, às vezes, pura discussão. Mas quase nunca esperam que um de nós se emocione com uma história contada por outro, sobretudo nesses nossos tempos que, parágrafos acima, classifiquei como ásperos, mas que, não raro, são muito mais do que isso: são perversos. Acostumados à agressividade parnasiana das redes sociais, a agressividade pela agressividade, os ouvintes se surpreendem com alguém que descortina o seu coração, como fez o Malenotti. E o Malenotti fez isso porque não está armado, não é áspero como são os tempos. Ao contrário, é homem de outra cepa, muito mais nobre do que quaisquer nobrezas de salão: o Malenotti é um homem bom.

DAVID COIMBRA

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