sábado, 16 de fevereiro de 2019



16 DE FEVEREIRO DE 2019
JJ CAMARGO

A BANALIZAÇÃO DO SAGRADO

O sofrimento humano não é, nem nunca será, robotizável

Se alguém planeja organizar a lista das profissões que serão desempenhadas por robôs no futuro, tenha certeza de que a medicina estará depois do fim desta lista. E isso, sem nenhum viés corporativista, por uma razão elementar: o sofrimento humano não é, nem nunca será, robotizável.

A experiência de décadas revela que a diversidade de reações diante de situações idênticas é uma característica imutável do ser humano, imprevisível, imponderável e único no seu jeito de reagir diante de um sofrimento que lhe parecerá sempre injusto, incompreensível e assustador. Pois é exatamente essa gama infinita de atitudes, previsíveis algumas, surpreendentes outras, que oferecem ao médico a chance ímpar de se tornar um ouvinte qualificado e um conselheiro confiável. Eram assim os médicos do passado, estão deixando de ser assim os médicos do presente, e deverão resgatar esta relação afetiva, se quiserem descobrir o fascínio desta profissão, os médicos do futuro.

Se isso for impedido por circunstâncias operacionais, ou negligenciado por falta de empatia, perdemos todos, médicos e pacientes, para o desencanto de uns e a frustração de outros.

A julgar pelo mau humor dos médicos que só tratam doenças e ignoram os portadores, a medicina como ciência isolada é de uma chatice exemplar. E por uma razão compreensível: as doenças são repetitivas e monótonas, e se não for a descoberta de que cada indivíduo se revela exclusivo no enfrentamento delas, seria absolutamente insuportável.

A telemedicina que se mostrou eficiente, por exemplo, no emprego da radiologia a distância, não serve de parâmetro para recomendar que todas as especialidades passem a utilizá-la, porque esta é uma área de restrito contato com o paciente, que sempre terá o médico solicitante como intermediário, para dar um destino às informações emanadas da imagem, responder as perguntas e reduzir ansiedade e fantasia. Enfim, ser o médico real.

Para fugirmos da radicalização que tem contaminado a maioria das ideias novas, é fundamental que se preserve a noção de que nem tudo que é possível fazer é razoável que se faça. As consultas que os médicos de áreas remotas possam fazer em busca da ajuda de colegas em centros diferenciados, devem ser estimuladas. A troca de informações de pacientes com seus médicos de referência, através de aplicativos, tornou-se uma rotina, pela praticidade e segurança, e certamente vão continuar. Mas imaginar que a mais densa relação que se pode estabelecer entre duas pessoas, que eram completamente desconhecidas até que uma delas adoeceu, possa ser desenvolvida integralmente através de um computador, mais do que insensibilidade, revela o total desconhecimento do que é uma relação médico/paciente na sua plenitude.

A generalização desta prática, liberada pelo Conselho Federal de Medicina, sem nenhuma discussão com médicos de verdade e as entidades que os representa, foi um gesto de tirania inaceitável.

Quem passou a vida atendendo pacientes em consultório e, por despertar a confiança deles, se tornou um fiel depositário do mais variado rol de sentimentos humanos recebeu esta resolução com pasmo e incredulidade. Só comparável, talvez, a uma hipotética normativa da Igreja Católica, que em nome da modernidade, anunciasse que a partir de agora, a confissão e a penitência, estariam disponíveis online, no site feadomicilio.com.

JJ CAMARGO

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