quarta-feira, 15 de maio de 2024


15 DE MAIO DE 2024
MÁRIO CORSO

A dor de perder a casa

Dada a magnitude da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul, proporcionalmente as perdas humanas têm sido minimizadas. A gigantesca mobilização de voluntários, as providências governamentais, o Exército lutando pela vida e o trabalho da Defesa Civil vêm salvando milhares de pessoas.

Quanto às perdas materiais da enchente, não sabemos nem como calcular. Mas existem também as perdas imateriais, que não podem ser contabilizadas. Quando alguém perde sua casa, perde junto seu ninho.

Um lar possui uma dimensão tanto física como psíquica. Por isso, os idosos opõem-se tanto a abandonar suas casas. Na fragilidade da velhice, abandonar a casa é como tirar a tartaruga do casco. A casa é o único lugar onde se sentem seguros. Eles sabem-se débeis para enfrentar o mundo.

Simbolicamente, nos sonhos, casa e corpo se equivalem. A dor de "perder tudo", que é a frase que frequentemente brota dos lábios dos atingidos, equivale a dizer que se perderam dos contornos do próprio corpo.

E ainda há o medo: os evacuados sentem-se frágeis, à mercê do pior. Não há como condenar esse pessimismo alarmista, ele é baseado na realidade. Existe a enchente e existe a canalhice dos saqueadores e oportunistas. Por isso, as mentiras que circulam na internet, aumentando o que já é ruim, são perniciosas, pois agravam a fragilidade dos desabrigados.

Não há tanta diferença entre as perdas materiais e imateriais. São dores da mesma espécie, porém de diferente magnitude. Casas podem ser recuperadas, vidas e objetos impregnados de memória não. A casa é também uma espécie de museu dos seus habitantes. Objetos de decoração lembram memórias de parentes, festas, viagens, visitas e amigos. 

Roupas são incrustadas de significado, aquela que foi usada para uma solenidade, a que o abrigava quando encontrou seu amor, a roupa que dá sorte quando usa na balada. Sem falar no casaquinho de tricô que a vó fez para sair da maternidade.

E nem entramos nas fotos e livros que a lama vai destruir, ou na bomba de chimarrão que herdou do avô, ou ainda na faca de churrasco que era do pai. Imaginem um menino que ficou sem seus brinquedos, uma menina que não pôde se despedir de suas bonecas.

Perder tudo é perder os objetos que testemunharam uma vida. É perder a memória do esforço que foi necessário para adquirir cada um de seus bens. Cada casco, no fim das contas, faz parte do corpo da tartaruga.

MÁRIO CORSO

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