sábado, 22 de junho de 2024

18/06/2024 - 15h38min
J. J. CAMARGO 

Morrer é nunca mais estar com os amigos

A leitura de uma obra pouco reverenciada de García Márquez me trouxe uma valiosa lição

"Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia." (José Saramago)

De vez em quando uma revisita a Gabriel García Márquez é uma experiência rica em novas descobertas e muitas confirmações. Uma das suas heranças literárias menos reverenciadas é Doce Cuentos Peregrinos. Da primeira leitura, não lembro de nenhum daqueles contos como marcante, talvez porque durante muito tempo fiquei empacado na introdução, tão maravilhosa que Gabo poderia ter parado por ali e a edição já estaria justificada. 

Nela, Gabo conta um sonho que tivera em Barcelona, durante um tempo de autoexílio que passou por lá. Ele sonhou com a própria morte e, durante o velório e enterro, acolheu os melhores amigos sul-americanos, dos quais ele tinha muita saudade. No seu sonho, eles estavam todos muito elegantes, vestidos a rigor, e felizes de estarem juntos outra vez. Comeram, beberam, repassaram as melhores histórias, riram, choraram de rir e, por fim, de pura emoção.

Descobri logo que ele era uma referência afetiva sempre que algum acadêmico se dispusesse a falar sobre bom humor, afeto espontâneo e entusiasmo por viver.

No final da tarde quente de Barcelona, quando se preparavam para voltar, Gabo ainda continuava abraçado com eles, quando foi advertido que não podia acompanhá-los porque ele tinha morrido. Confessou então ter aprendido nesse momento o que significa morrer: é nunca mais estar com os amigos.

Essa proposta original do que significa morrer mexeu muito comigo.

Passados pelo menos 12 anos, provavelmente estimulado por um passeio recente pelo meu arquivo correspondência afetuosa, sonhei que almoçava em um restaurante próximo à Academia Nacional de Medicina com o querido professor Orlando Marques Vieira. Meu encantamento pelo professor começou na visita acadêmica, um ritual que precisa ser cumprido por todos os pretendentes a uma vaga como membro titular da Academia Nacional de Medicina. Quando liguei para agendar a visita, Orlando pediu que o encontrasse na sede do Colégio Brasileiro dos Cirurgiões, então presidido por ele.

No início da conversa, ele comentou: "Então teremos mais um gaúcho na Academia. E gaúcho de Porto Alegre?". Respondi: "Não, professor, eu nasci em Vacaria". E a conversa mudou de rumo: "Então você não vai estar sozinho na Academia. Numa viagem de carro para o sul, eu me encantei com os Campos de Cima da Serra, e dormi na tua Vacaria".

Pronto: o gelo estava quebrado, e como se fôssemos velhos amigos, seguimos conversando. Muitas vezes, quando nos saudávamos na Academia ele perguntava como andava a nossa Vacaria.

Descobri logo que ele era uma referência afetiva sempre que algum acadêmico se dispusesse a falar sobre bom humor, afeto espontâneo e entusiasmo por viver, fosse qual fosse a motivação da conversa.

No sonho, eu lhe contava de um simpósio que estou preparando na Seção de Cirurgia e que envolve a seleção das perguntas de mais difícil resposta, mesmo na opinião desse grupo de médicos experientes e bem resolvidos.

Como era previsível, as perguntas mais desconcertantes, seguidas das respostas mais inteligentes, brotavam da experiência de exercer a medicina durante décadas, movidos pela insaciável gratificação de cuidar do outro. O projeto é transformar esses relatos numa espécie de manual para os jovens médicos, que em geral fogem das perguntas mais difíceis por não saber como respondê-las.

Quando terminou o almoço do sonho, e o convidei para irmos para a Academia, como fizemos tantas vezes, ele me disse que infelizmente não poderia me acompanhar porque estava morto. E então, com o sorriso debochado que era a sua marca, me confidenciou: "Uma pena eu não poder participar deste teu simpósio, porque eu teria cada pergunta".

Eu sei que sim, professor, e tenho a dolorosa noção do quanto perdemos.

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