segunda-feira, 24 de junho de 2024


24/06/2024 - 06h00min
KELLY MATOS

O som que dói 

O fenômeno ocorre porque houve, pra nós, algo como uma quebra de confiança, sentimento semelhante ao que experimentamos quando descobrimos uma traição. 

Entre os muitos elementos potencialmente traumáticos que a enchente de maio despejou sobre nós, gaúchos, há um que passou a nos atormentar sem pedir licença: ouvir o barulho da chuva. Se antes o som da água caindo poderia significar serenidade, relaxamento e uma aparente calmaria – quem sabe, um dia “bom pra dormir” –, agora, ao menor sinal de nuvens escuras, o coração aperta, a angústia invade o peito e a trilha sonora, antes perfeita para o sono, toma o rumo oposto, nos impedindo de adormecer. 

Voltou a chover. Que pesadelo. Será para sempre assim? 

Agora, ao menor sinal de nuvens escuras, o coração aperta, a angústia invade o peito. O fenômeno ocorre, explica a psicóloga Arieli Groff, especialista em luto e traumas, porque houve, pra nós, algo como uma quebra de confiança, sentimento semelhante ao que experimentamos quando descobrimos uma traição. Antes, ouvir barulho de chuva nos remetia, de modo geral, a notas de calmaria, relaxamento, era um som capaz de nos fazer desacelerar. 

Não à toa, diversas meditações guiadas têm esta trilha ao fundo. Eis que maio surgiu, e a chuva nos machucou profundamente. Perdemos amigos, familiares, a casa e os móveis conquistados com o suor de uma vida inteira. O som até outrora meditativo, agora se tornou gatilho que remete a cenas de horror e desespero: pessoas no telhado pedindo socorro, água alagando regiões inimagináveis, o bebê enrolado em uma mantinha e sendo resgatado por bravos agentes em um helicóptero. 

Difícil. 

Tal como na quebra de confiança da traição, há relações que jamais voltam a ser o que eram antes. Casais que não conseguem mais se olhar, amizades que não tornam a ser o que eram, justamente por conta dessa ruptura, desse medo que sentimos de que a dor volte a se repetir. 

É nesse estágio que estamos. Machucados, traídos pela chuva. Será possível reconstruir nossa relação com ela? Difícil. É o tempo que trará essa resposta. Recuperar confiança em alguém pode levar meses, anos. E, ainda assim, pode ser que nunca mais volte a ser aquilo que um dia foi.

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