quarta-feira, 28 de novembro de 2012


Antonio Prata

Descuido *

No relacionamento, às vezes a gente se sente como quem dirige no estrangeiro: errando e sendo xingado

- Maravilha, vaga bem na frente. - Cê não acha mais seguro deixar no valet?

- Vinte e cinco paus?! - Se a gente sair tarde...

- Prefiro dar o dinheiro pro ladrão que pro valet: pelo menos o roubo é explícito. Pode deixar, a gente vai embora cedo -ele diz, já fazendo a baliza.

- Ó lá, hein? São Paulo tá fogo, não quero dar mole de madrugada...

Ele desliga o carro. Vai abrir a porta, hesita: - Cê tem uma bala, aí?

- Tenho um Trident, serve? - Serve.

Ela pega o chiclete na bolsa. Vai dar pra ele, hesita:

- Engraçado, cê nunca gostou de bala, chiclete, por que isso, agora?

- Porque... Ah, essa coisa de vernissage, todo mundo espremidinho, falando um na cara do outro, sei lá, vai que...

- Que?... Vai que eu tô com um bafinho? - Que nojo! Cê tá com um bafinho?!

- Não sei, tô? - Sei lá! Não! Por que que cê ia tá com bafinho?

- Ué, tava no trabalho, um tempão sem comer, reunião... Sabe aquelas pessoas que têm um bafinho de trabalho? Morro de medo. Daí o chiclete.

Ele vai pegar o Trident: ela fecha a mão -e a cara. Ele suspira. (Às vezes sente-se no relacionamento como quem dirige num país estrangeiro: vira e mexe, sem nem perceber, está cometendo infrações, levando apito do guarda, escutando xingamentos dos outros motoristas.)

- Que foi? - Como, que foi?! Quer dizer que se você tiver com bafo a sua maior preocupação é com o pessoal na vernissage, não comigo?!

- Não, eu... Olha, eu não acho que tô com bafo! É, é só um cuidado.

- Cuidado com eles e descuido comigo! Eu sou sua mulher! É comigo que você tem que se preocupar! "De tudo ao meu amor serei atento antes", não é esse o verso do Vinicius que você vive citando por aí? Bafinho! Vê se pode! É o fim do amor!

- Que fim... Escuta, vamos lá pro lançamento?! É perigoso ficar aqui discutindo dentro do carro.

- Ah! Pra economizar R$ 25 do valet não era perigoso, mas pra resolver a situação com a sua mulher, é?!

- Que situação?! Não tem situação nenhuma! Eu só pedi uma bala! Onde cê tá querendo chegar com essa discussão?

- Eu que te pergunto! Onde cê tá querendo chegar com essa atitude?

- Eu? Eu quero chegar no lançamento, só isso. Será que dava pra gente ir pro lançamento?

- Se você tá tão preocupado assim com esse lançamento, vai! Vai que eu vou embora!

- Olha, se eu sair desse carro vai ficar configurada uma briga, cê sabe, né?

- É bom, mesmo, pra você ficar mais esperto comigo. Quem ama, cuida! Não é Vinicius, mas é bem verdade! Vai, vai pro seu lançamento!

Ele dá a chave pra ela. Sai do carro. Ela pula pro banco de motorista e arranca, cantando pneus. Ele olha em volta, não vê nenhum conhecido. Põe a mão em concha sobre a boca e o nariz. Testa. Parece que não: mas vai que? Compra um saco de pipocas e entra mastigando, seguro e infeliz.

*Texto escancaradamente inspirado nos diálogos de casal do Marcelo Rubens Paiva.

antonioprata.folha@uol.com.br