CONTARDO
CALLIGARIS
A menina que se achava 007
Por
que uma menina de 13 anos entende um filme de James Bond, mas não a tragédia de
uma família?
ASSISTI,
NESSES dias, a um documentário bonito e tocante, "Diário de uma Busca",
de 2011.
A
autora, Flavia Castro, investiga a morte misteriosa de seu pai, Celso Afonso
Gay de Castro. Junto com um amigo, também militante de esquerda durante a
ditadura, Celso morreu ou foi morto, em 1984, em Porto Alegre, no apartamento
de um alemão que teria sido oficial nazista.
Na
tentativa de entender o que aconteceu, Flavia reconstrói sua própria infância
durante a clandestinidade e o exílio dos pais, nos anos 1960 e 1970, por
Argentina, Chile, França e Venezuela.
Achei
que uma menina como S., 13 anos, gostaria do filme, e a deixei em frente à TV,
aparentemente interessada. Meia hora mais tarde, S. estava no meio da reprise
de "007 - Cassino Royale", o James Bond de 2006, que ela já vira duas
ou três vezes. Ela me disse que tinha parado o documentário porque "não
entendia o que acontecia na história".
Ou
seja, uma menina inteligente de 13 anos "entende" sem problema que
Bond mate um tal Mollaka, explodindo, no Madagascar, a embaixada do país de
Nambuto (?), e logo ele reapareça na casa de M. na Grã-Bretanha -ou talvez ele
reapareça (não me lembro mais) nas Bahamas- para seduzir a mulher de Dimitrios.
A mesma menina não entende a fuga de um militante de 40 anos atrás -aliás, nem
estou certo que ela entenda o que era um militante de 40 anos atrás.
Tudo
bem, lamento a mediocridade do ensino e, em geral, a futilidade da conversa dos
adultos. Mas há uma outra razão, talvez mais importante, que faz que, para S.,
seja mais fácil entender as aventuras fantásticas de Bond do que a tragédia
real da família Castro.
É aqui
que a leitura de "O Homem que se Achava Napoleão - Por uma História Política
da Loucura", de Laure Murat (Três Estrelas), torna-se indispensável.
Murat
mostra exaustivamente como, da Revolução Francesa até a Comuna de Paris, os
acontecimentos políticos e sociais modelaram a loucura e os delírios. Claro, no
meio do Terror, com suas incessantes execuções públicas, era mais fácil do que
hoje que alguém acreditasse ter sido decapitado e andar pelo mundo com a cabeça
de outro, erroneamente instalada no seu pescoço.
Mas
as implicações do livro de Murat são mais gerais e radicais. Como mostra
Jurandir Freire Costa no breve mas importante prefácio, a questão é: "Em
que medida a loucura pode ser dissociada da atmosfera cultural que a cerca?".
Como
Murat (e como Freire Costa), tendo a pensar que cada cultura (e cada época de
cada cultura) dá forma a sofrimentos psíquicos que lhe são próprios.
As
revoluções do fim do século 18 produzem um homem novo, de quem ainda somos os
herdeiros.
Esse
homem novo é levado a "apreender a ordem do mundo através de sua
subjetividade": ele "se identifica com os personagens do romance
psicológico", "funda a introspeção como meio de conhecimento" e,
sobretudo, ele é obrigado a reconhecer que a autoridade não é mais um atributo
dos padres, dos nobres ou dos anciões. Ele mesmo, esse homem novo, deve decidir
no que acreditar, seguindo seu foro íntimo e suas convicções.
Uma
parte dos transtornos modernos derivam da incerteza de quem abandonou sua
confiança tranquila nas tradições laicas ou divinas. Mas talvez esses não sejam
os transtornos mais graves.
Bem
na aurora da modernidade, Philippe Pinel, o inventor da psiquiatria, observa
que, de todas as formas de mania, duas são incuráveis: "os inchaços do
orgulho e o fanatismo religioso".
Laure
Murat entende que Pinel, aqui, está sendo "político", transformando
em doenças incuráveis as paixões dos grandes inimigos da Revolução Francesa (os
aristocratas são "orgulhosos", e o clero é "fanático").
Mas
eu acho que Pinel, nessa observação, está também descrevendo com propriedade os
transtornos mais graves da modernidade, que são reativos. É contra a angústia
de ter que inventar e sustentar nossas próprias crenças que adotamos fanatismos
religiosos nostálgicos ou fantasias grandiosas e heroicas nas quais imaginamos
que somos as pedras angulares do mundo, invencíveis, imortais, extraordinários
e únicos. Esse "inchaço do orgulho", aliás, é o que mais gostamos de
transmitir a nossas crianças, para que continuem tão grandiosas e heroicas quanto
nós somos, em nossas delirantes fantasias.
Entende-se
por que S., 13 anos, acha que uma história de James Bond é mais compreensível
do que a incerteza e a dureza do destino da família Castro.
ccalligari@uol.com.br