FERREIRA
GULLAR
Crime e
castigo
Punir
é, portanto, afirmar a equidade entre os cidadãos, sem o que as normas sociais
perdem significação
VAMOS
PENSAR juntos: você acha que seria viável uma comunidade humana sem leis, sem
normas? Claro que não, porque onde não há normas a serem obedecidas, impera a
lei do mais forte, o arbítrio.
Todos
sabemos que a natureza não é justa, já que faz pessoas saudáveis e pessoas
deficientes, pessoas belas e pessoas feias, talentosas, mas sem talento outras.
Isso é o óbvio, mas nem todo mundo tem a inteligência de um Albert Einstein ou
o talento musical de um Villa-Lobos. A justiça é, portanto, uma invenção
humana, porque necessitamos dela.
De
certo modo, a aplicação da Justiça decorre da necessidade de normas que regulem
a sociedade -e que são resultado de uma espécie de acordo tácito, que torna
todos, sem exceção, sujeitos a ela. Quem as viola deverá ser punido.
É
chato ter que punir, mas, se não houver punição, as normas sociais correm o
risco de não serem obedecidas, o que levará a sociedade à desordem total. Ao
mesmo tempo, não é justo que todos sejam obrigados a obedecer às normas e que
aqueles que não as obedeçam não paguem por isso.
Daí
a instituição da Justiça na sociedade, que foi criada para que o cidadão que
desrespeite as normas seja punido e passe a obedecê-las. A punição, portanto,
não é represália, vingança da sociedade contra o transgressor: é o recurso de
que ela dispõe para fazer justiça e manter o respeito às leis sem as quais o
convívio social se torna inviável.
Faço
essas óbvias considerações porque, como já observei aqui noutra ocasião, a
impressão que se tem, muitas vezes, é de que punir é algo que só se deve fazer
em último caso e do modo mais leve possível.
Participo,
em parte, dessa opinião, desde que não implique em anular totalmente o objetivo
da punição, que é manter a obediência dos cidadãos às normas que regem o
convívio social. Se o princípio de justiça é de que todos são iguais perante a
lei, a não punição de quem a viole é a negação desse princípio.
Isso
é tanto mais grave quando se trata de pessoas ricas e poderosas que, em nosso
país, dificilmente são punidas. Todos são iguais, mas há aqueles que são mais
iguais.
Punir
é, portanto, afirmar a vigência da lei e a equidade entre os cidadãos, sem o
que as normas sociais perdem significação.
Isso
fica ainda mais evidente se nos lembramos de como a punição funciona no
futebol. Ali, como na vida social, todos estão sujeitos às mesmas normas,
graças às quais o jogo se torna possível. E ali, como na vida, quem viola as
normas deve ser punido, e com penas que variam de acordo com a gravidade da
falta cometida. Se um jogador de um dos times chuta o adversário dentro da
pequena área, a punição é o pênalti. Se o juiz não pune o infrator, o jogo
perde a graça, e os torcedores se revoltam.
Na
sociedade, também. Por isso, de vez em quando, vemos pessoas na rua se manifestando
contra a falta de punição a indivíduos que, muitas vezes, não respeitam nem
mesmo a vida humana.
A
punição não é pura e simplesmente castigo pelo mal ou erro cometido. Nela está
implícito o intuito de educar o infrator, de levá-lo a compreender que mais
vale obedecer às normas sociais do que violá-las. Isso não significa, no
entanto, que todo infrator, ao ser punido, passe a obedecer às normas sociais.
Sabemos
que tal coisa nem sempre acontece, pois muitos deles jamais abandonam a prática
do crime. Se isso não justifica tratar a todos como irrecuperáveis, tampouco
implica em ver a punição como um abuso da sociedade contra o indivíduo. É
igualmente inadmissível manter os presos em condições carcerárias sub-humanas.
Se
faço tais considerações, é porque tenho a impressão de que nossos legisladores
e os responsáveis pela efetivação da Justiça parecem ter esquecido o verdadeiro
propósito da punição.
Sentem-se
culpados em punir e, por essa razão, criam leis ou as aplicam de modo a, por
assim dizer, anular a punição. Frequentemente, um prisioneiro deixa a prisão
para visitar a família, some e volta ao crime. E você acha mesmo que um jovem
de 16 anos não sabe que roubar e matar é errado? Mas nossas leis acham que não.
Tal
procedimento não ajuda a ninguém. Quando um juiz de futebol pune o jogador que
comete falta, não está praticando uma maldade, está seguindo a norma que
permite que o jogo continue.