27
de novembro de 2012 | N° 17266
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Minha infância
solitária
Eu
era tão sozinho na infância que se aparecesse um fantasma pra falar comigo não
ficaria com medo, mas conversaria com ele. Pediria para que a assombração não
se assustasse, que saísse debaixo da cama, que viesse descrever os
aborrecimentos e desabafar as circunstâncias da morte.
Puxaria
uma cadeira para aliviar seu cansaço de atravessar paredes. Se viesse
arrastando correntes, abriria o cadeado com a chave pequeninha do porão, que
funcionava maravilhosamente bem com fechaduras desconhecidas.
Olharíamos
as ilustrações de Alice no País das Maravilhas e nadaríamos no lago de lágrimas
da personagem. Emprestaria um dos meus três abrigos escolares, afinal, os
mortos costumam se vestir mal.
Iríamos
juntos, de mãos dadas, para o colégio. Dividiria minha Pastelina e meu Nescau.
Mostraria qual o banco de pedra predileto do recreio, com vista privilegiada
das rodinhas das meninas bonitas.
Poderia
chutar pinha no meio da rua: o bueiro seria o nosso gol. Assistiríamos ao
trânsito do banco de trás do Opala amarelo do pai. Insistiria para a mãe
preparar bolinho de arroz. Ele me ajudaria a escalar árvores e muros.
Perguntaria
se ele gostaria de brincar de gladiador com as tampas do lixo. Teria alguém
para andar de gangorra e fazer peso ao meu corpo.Teria alguém para evitar o fim
de pedra dos passarinhos.
Teria
alguém para chorar a separação dos pais. Teria alguém para me confortar nos
exercícios de matemática. Teria alguém que não me acharia estranho, esquisito,
monstro. Teria já alguém confirmado para minha festa de aniversário.
Eu
seguraria o botão do bebedor enquanto ele se curvaria ao esguicho. Ele me
avisaria das pedras irregulares da praça. Jogaríamos miolo de pão para as
pombas.
O
fantasma seria meu amigo predileto, meu confidente, meu guia de estimação.
Muito melhor do que amigo imaginário – ostenta mais experiência.
Jamais
recusaria sua visita.
Só
esnoba o invisível quem não é carente. Sempre fui faminto de acontecimentos.
Sempre fui ouvinte porque não tinha com quem trocar confidências até os oito
anos.
Escutava
vento, escutava chuva, escutava até o sol. Vivi um claustro involuntário. Fui
um monge mirim. Meus olhos cresceram pelo excesso de palavras por dizer. Nunca
desperdiçaria a chegada de um fantasma. Salvaria a minha solidão.