01 de agosto de 2015 | N° 18244
DAVID COIMBRA
O homem e o leão
“Do que come saiu o que se come. Do forte saiu a doçura.”
Foi esse o enigma proposto por Sansão aos convidados do seu casamento com uma filisteia, há pouco menos de 3.200 anos, quando não existia Facebook, não existia celular, não existia Netflix, não existia Maserati, mas já existia casamento.
Você, que conhece a história desse super-herói dos hebreus, sabe bem a que ele se referia: algum tempo antes de suas núpcias, Sansão caminhava pelo deserto quando foi atacado por um leão jovem. Como era dotado de força descomunal, Sansão matou a fera “como se fosse um cabrito”, segundo o livro dos Juízes.
Considero essa informação preciosa, porque não sei se teria força para matar um cabrito com as próprias mãos, o que talvez seja uma vergonha para quem é filho do velho Gaudêncio, que, no Alegrete, derrubava um touro a unha, tomando-o pelas guampas, e depois o mantinha imóvel no solo e amarrava suas patas como se ele fosse... bem... um cabrito.
De qualquer forma, o que interessa é que Sansão deixou o corpo do leão rojado na areia quente e foi se ocupar com seus afazeres. Semanas depois, ele passava de novo pelas imediações e decidiu ver o que era feito da carcaça do animal. “Mas eis que na boca do leão estava um enxame de abelhas com mel”, relata o livro. Sansão, então, colheu da colmeia uma fava de mel e saiu se lambuzando.
Sansão sentiu justo orgulho de sua façanha, até porque não foi ele quem pediu briga. O leão é que veio, ainda que a carne humana não seja a favorita dos grandes gatos, com raras exceções.
Ferozes exceções foram dois leões especialíssimos do fim do século 19. Consagraram-se como devoradores de gente militando em Tzavo, no Quênia, terra do pai do Obama. Eles eram chamados de Sombra e Escuridão. Há um bom filme de Hollywood a respeito. Sombra e Escuridão eram leões sem juba, enormes, com mais de três metros de comprimento. Vi fotos deles. Suas peles estão expostas num museu de Chicago e parecem menores do que os corpos que envolviam, porque encolheram com o tempo.
Os ingleses estavam construindo uma ferrovia no território dos dois leões, o que lhes propiciou fartura de caça. Sombra e Escuridão se viciaram no sabor adocicado da carne dos operários africanos. Durante nove meses, banquetearam-se com os corpos de mais de 140 homens. Atacavam de forma coordenada e inteligente. Quando a noite caía, eles rasgavam as lonas das barracas e arrastavam a vítima para seu covil. Os gritos dos homens sendo dilacerados gelavam os ossos dos demais trabalhadores, que chegaram a fazer uma greve, pedindo a interrupção das obras da ferrovia. Um caçador inglês, depois de muita lida, acabou matando os leões a tiros.
Nós, seres humanos, nós matamos. É coisa nossa. Posso compreender matanças defensivas, como a de Sansão no deserto da Filisteia ou do inglês na aridez do Quênia. A do dentista americano que assassinou e decepou o leão da reserva do Zimbábue, não. Essa foi uma matança por prazer.
A matança por prazer explica os empresários que deitam cal no leite das crianças, os médicos que receitam prótese a quem não precisa, os adulteradores dos remédios dos velhinhos, os bandidos que atiram para levar o par de tênis. Porque, se o homem mata por gosto, o que não fará por lucro?
Olhe para o dentista. Olhe para o leão. O leão viveu sentindo majestosa indiferença pelo homem, a quem permitia admirá-lo. O leão era magnífico apenas por ser, sem ter de provar nada, sem ter de ter nada. O homem, por invejar essa nobreza, arrancou-lhe a cabeça e a empalhou, para possuí-la. Que vergonha para a espécie. Que vergonha, Homo sapiens.