01 de agosto de 2015 | N° 18244
CLÁUDIA LAITANO
Bonequinha azul
1) Nossos sonhos são produzidos por estruturas que lembram estúdios de cinema, onde personagens e preocupações reais do dia a dia são embaralhados, dando origem a histórias malucas que, mesmo parecendo não fazer qualquer sentido à primeira vista, contam muito sobre quem somos e sobre o que sentimos.
2) Nossas memórias mais banais podem dar origem a registros permanentes que ajudam a moldar a forma como nos relacionamos com o mundo pelo resto de nossas vidas. 3) Quando nossas emoções estão sozinhas no comando, as consequências são imprevisíveis. 4) Lembranças podem mudar com o tempo. 5) O livre-arbítrio não é tão livre assim.
Tudo isso, e um pouco mais, está no roteiro da animação Divertida Mente – um dos melhores filmes do ano e uma das maiores trapaças cinematográficas dos últimos tempos. Não para os adultos, bem entendido, que em geral têm gostado do filme, mas para o seu suposto público-alvo, as crianças, que, não conseguindo alcançar todas as camadas de sentido que compõem a trama, têm dificuldade para entender por que, afinal, os pais saem tão empolgados do cinema (quando Minions é obviamente muuuito mais divertido).
O sucesso de Divertida Mente, e mesmo a ideia de que memórias, emoções e mecanismos do cérebro pudessem dar origem a um filme infantil, refletem a recente popularidade da neurociência junto ao público leigo. Lidando com questões com as quais os artistas e os filósofos vêm se defrontando há séculos – quem somos e por que somos do jeito que somos –, a ciência que estuda o sistema nervoso inter-relaciona disciplinas tão diversas quanto biologia, computação, química, física e psicologia, tentando decifrar um dos mais complexos sistemas sobre o qual o homem já se debruçou.
Autores como o psicólogo e linguista Steven Pinker, o neurologista Oliver Sacks e os neurocientistas António Damásio e Sam Harris tornaram-se best-sellers escrevendo sobre o cérebro e suas insuspeitadas conexões com o tipo de sociedade que construímos e com a forma como interpretamos e reagimos à realidade.
Não por acaso, todo esse interesse pela neurociência coincide com a medicalização crescente de diferentes aspectos da experiência humana. Foram os avanços da ciência que tornaram possíveis remédios cada vez melhores e com menos efeitos colaterais, diminuindo o sofrimento de pessoas com problemas graves como depressão. Ao mesmo tempo, muitos cientistas têm se esforçado para demonstrar que nem tudo que é complexo ou causa sofrimento e ansiedade é necessariamente doença e precisa ser tratado com medicamentos.
Muitas vezes, como o desfecho de Divertida Mente assinala com muita delicadeza, é preciso acolher a tristeza e deixá-la seguir seu curso – aceitando a bonequinha azul como parte daquilo que nos torna humanos e capazes, entre outras coisas, de perceber e reagir ao sofrimento alheio.