11 de
agosto de 2015 | N° 18256
DAVID COIMBRA
O Gre-Nal de dois séculos
O auge de
Porto Alegre se deu nos anos 1940. Os Ratos, de Dyonelio Machado, se passa um
pouco antes disso, em meados da década de 1930, mas dá ideia do que era a
cidade. Por esse tempo, Porto Alegre inventou o cafezinho servido com um copo d’água
gelada, dizem que em adaptação de hábitos portenhos. Pode ser, mas, de qualquer
forma, acho o cafezinho com copo d’água gelada uma marca porto-alegrense.
Nos anos 1940, a vida de Porto Alegre
acontecia no Centro. Faz toda a diferença, porque é aí que está a alma da
cidade. Desta cidade. Sucessivos administradores bem-intencionados e bem
equivocados foram arrancando pedaços das características do Centro, até que
muito pouco restasse. É a ideia equivocada de que o empobrecimento é bom para o
pobre. Em certo momento, os camelôs privatizaram a Rua da Praia; antes disso,
as paradas de ônibus primeiro enfearam, depois inviabilizaram o bulevar que era
a Salgado Filho. Assim se sucederam medidas que pareciam populares e que, na
verdade, eram vulgares. E foi isso que ocorreu com nosso belo Centro: se
vulgarizou.
Nos anos 1940,
o grande comércio de Porto Alegre palpitava no Centro. Havia a Casa Masson, com
seu robusto relógio em forma de cubo pelo qual as pessoas conferiam a hora mais
certa; havia a Livraria do Globo, onde Quintana fazia a tradução de Em Busca do
Tempo Perdido; havia o Grande Hotel, onde Oswaldo Aranha tramou com Getúlio a
sabotagem da democracia brasileira; havia os cines Cacique e Imperial; havia o
Restaurante Dona Maria, onde nasceu o Grêmio. O próprio Grêmio instalara sua
sede num prédio da Rua da Praia, e, no prédio contíguo, parede com parede, era
a sede do Inter – de uma sacada era possível pular para a outra, imagine.
Vicente Rao,
maior Rei Momo da cidade, criador da primeira torcida organizada do Inter,
trabalhava no Centro e, no Centro, cometia as melhores brincadeiras do seu
bloco de Carnaval, “Tira o Dedo do Pudim”. Uma vez, Rao se meteu numa fralda
gigante, botou um bico entre os lábios e deitou num carrinho de bebê do tamanho
de um fogão, que ele podia dirigir e frear internamente. Outro amigo se
fantasiou de babá e foi levando o carrinho pelo alto da Rua da Praia. Lá de
cima, o amigo babá simulou ter deixado o carrinho escapar e Rao desceu Rua da
Praia abaixo gritando “socorro, saiam da frente!”, para desespero dos passantes
que não sabiam que ele podia controlar a coisa.
O cordial
inimigo de Rao era Salim Nigri, que, exatamente na Rua da Praia, pintou um dia
uma faixa para levar ao jogo do Grêmio com a seguinte frase: “Com o Grêmio,
onde estiver o Grêmio”. Lupicínio inverteu a frase e a imortalizou no Hino do Clube.
Naqueles anos 1940,
o futebol gaúcho era quase amador. O maior jogador da história do Inter,
Tesourinha, ganhava um quilo de carne e dois litros de leite por dia, como
complemento do salário, para ficar “mais forte”. O Inter era dono do famoso “Rolo
Compressor”. Em 1948, a
direção do Grêmio, irritada com um juiz, decidiu desistir do campeonato. Antes
de um Gre-Nal, viajou com o time para Curitiba, para jogar um amistoso.
Os reservas
dos reservas encararam Tesourinha, Carlitos e Ávila. Foram amassados: 7 a 0. Desde aquele domingo, nunca mais
houve um clássico com cinco gols de diferença, até o domingo passado. Quantos
gaúchos nasceram e morreram entre 1948 e 2015? Quantas verdades se esfacelaram?
Quantas mentiras foram descobertas? Nem Porto Alegre é mais a mesma. Tanto de
tudo mudou... Sim, senhores, esse Gre-Nal é um Gre-Nal de dois séculos.