Alfabetização requer mais do que só método, diz ganhadora do Jabuti
Luis Evo/Folhapress | ||
A educadora Magda Soares, 85, uma das maiores especialistas em alfabetização no país |
Pouco antes de ter a aposentadoria compulsória na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o que ocorre aos 70 anos, a professora Magda Soares adiantou sua saída. Depois de décadas na docência e pesquisa, decidiu voltar às escolas públicas (onde começou a carreira) de forma voluntária.
Autoridade em pesquisas sobre alfabetização, ela atuou então em uma creche e, desde 2007, passou a coordenar um projeto de alfabetização no município mineiro de Lagoa Santa (a 35 km da capital), que veio a se tornar uma referência no país, com resultados superiores à preocupante média brasileira.
Aos 85 anos, sua última obra "Alfabetização –A Questão dos Métodos" (Ed. Contexto) recebeu o prêmio Jabuti de 2017 na categoria educação e, no início de dezembro, foi escolhido como o livro de não ficção do ano.
"A ideia é que esse livro alertasse quem forma o professor de que alfabetização é mais do que métodos", disse. Além de defender a articulação entre teorias e métodos para que se entenda o processo de alfabetização –e dessa forma, realizá-lo– Soares ressalta a importância da reformulação dos cursos de formação de professores e da Base Nacional Curricular (que define o que se deve aprender).
Folha - No livro, a senhora reforça a importância de pensar menos no método de alfabetizar, mas sim em alfabetizar com método. Por quê?
Magda Soares - A discussão na alfabetização sempre ficou na questão dos métodos. Qual usar? Qual é melhor? Fiquei 40 anos na universidade trabalhando com formação de professores e fazendo pesquisas, e a pergunta que me fazia era a seguinte: todo mundo dá o método, mas o método tem que estar com a base em teorias, em fundamentos. Mas cada método tem uma coisa certa aqui, mas nunca é tudo. Outro faz sentido pra outra coisa, mas não pra outra.
A alfabetização é uma questão complexa, que tem muitas facetas. E a tendência dos métodos é olhar um lado só, só uma faceta, e o objeto se perde. Nos anos 1980, fiz uma pesquisa longa para levantar toda a produção científica. Ninguém discutia o que é alfabetização. E sempre houve na área uma tendência, um partidarismo, de ser a favor a determinado método.
Quando falamos em uma criança alfabetizada, estamos falando do que exatamente?
Tudo se discute sem se pensar o que, afinal, é isso. Eu vejo dois lados importantes. Primeiro é o ponto de vista da criança, do desenvolvimento cognitivo. E por outro, um desenvolvimento cognitivo para quê? Para se apropriar de um objeto linguístico que é muito complexo. Fiz um capítulo sobre isso motivada sobretudo pela tendência de as pessoas quererem importar sucessos exteriores. Ah, porque os americanos já resolveram que o método fônico é melhor.
Mas olha a ortografia do inglês e olha a ortografia do português. No inglês, há uma relação muito complexa. Tem uma letra que representa vários sons, um conjunto de letras que representa vários sons. E vários sons que são representados pelas mesmas letras. É uma língua muito opaca. Na outra ponta, tem o finlandês. Cada letra um fonema, cada fonema uma letra. Aí dizem: "A gente tem que fazer igual na Finlândia", "as crianças se alfabetizam em seis meses". Está bom, mas a ortografia deles ajuda isso.
Mas olha a ortografia do inglês e olha a ortografia do português. No inglês, há uma relação muito complexa. Tem uma letra que representa vários sons, um conjunto de letras que representa vários sons. E vários sons que são representados pelas mesmas letras. É uma língua muito opaca. Na outra ponta, tem o finlandês. Cada letra um fonema, cada fonema uma letra. Aí dizem: "A gente tem que fazer igual na Finlândia", "as crianças se alfabetizam em seis meses". Está bom, mas a ortografia deles ajuda isso.
Essas línguas favorecem métodos mais homogêneos?
Sim. Porque você vai ensinar uma criança brasileira a se alfabetizar e tem uma mesma letra que pode representar diferentes sons. Ou diferentes sons serem representados pela mesma letra. O que não acontece no finlandês, que é uma ortografia transparente, registra exatamente os sons da língua. Não adianta buscar exemplos do finlandês, porque está alfabetizando num outro objeto. Então vamos trazer a experiência dos Estados Unidos, que tem uma produção de pesquisas enorme? Mas são ortografias completamente diferentes. A do português brasileiro é próxima da transparência.
O foco da discussão foi muito direcionado em o que fazer?
Sempre se considerou em ensinar a ler e escrever, se pensou nisso como método. No Brasil, a alfabetização sempre foi um problema da pedagogia. A partir de um certo momento os linguistas começaram a se interessar e isso no Brasil começou nos anos 1970, outro dia historicamente.
Só a partir disso começa ter uma produção significativa de linguistas olhando para "o que a criança faz com a língua". E, ao mesmo tempo, a psicologia cognitiva se voltou para o contrário: "o que a língua escrita faz com a criança". Dois campos que foram trabalhando isolados, e a pedagogia como um terceiro, dizendo: é preciso falar o que é pra fazer. E o pedagogo acaba isolado sabendo que vai pra sala de aula logo após a formatura.
A gente forma o professor, põe na sala e fala: "Alfabetiza essas crianças". Então ele diz: "Me dá uma cartilha, livro, uma receita". Acho que está mais evidente que só se pode discutir alfabetização conhecendo como o processo ocorre. É o processo cognitivo de crianças em determinadas fase de desenvolvimento para se apropriar de um objeto linguístico, de características próprias. Além das pesquisas, [o projeto de]Lagoa Santa me ajudou muito. Porque eu pude ver a coisa acontecendo, e tentar fazer com que as professoras não ficassem atrás do "que é que eu faço", mas atrás do "por quê".
A que a senhora atribui o sucesso em Lagoa Santa?
É um projeto baseado em teorias e de trabalho com as professoras. Nada foi artificial, é o pessoal da rede. Para atingir a rede toda, escolhi uma professora da sala de aula de cada escola. A primeira providência foi a base [curricular]. Falei: vamos pensar juntas quais habilidades que as crianças têm de adquirir pra aprenderem. Fiz uma versão, que chamamos de nossas metas, ano por ano. Discuti e me corrigiram muito.
A gente até leva em consideração avaliações externas, mas o que nos interessa são as metas que temos, e o que a gente está fazendo pra chegar lá. E não tem material pronto.
As pessoas nunca se perguntaram como se alfabetiza com qualidade. Entra numa tradição de repetir, porque só estão atrás de métodos. E o fundamental é alfabetizar com métodos, e isso significa que eu entenda o que estou fazendo. E aí muda enormemente quando se vê uma criança com dificuldade.
Como a senhora vê a oposição de pesquisadores que receiam uma escolarização adiantada na educação infantil?
Dizem que é forçar a criança, que nessa fase ela tem de ter campos de experiências. Bom, toda criança se desenvolve com experiências. Mas na educação, o que caracteriza as experiências é que elas são dirigidas para determinadas habilidades, conhecimentos que deve se adquirir. Mas não querem saber para onde a experiência vai, e acham que a alfabetização começa em uma determinada hora.
As crianças nascem hoje no meio da escrita. Elas estão vendo escrita por todo lado, veem os pais, têm interesse. Toda criança pergunta "como é a letra?" "O que está escrito?".
Como vê a discussão sobre considerar o processo de alfabetização até o 2º ano ou até 3º ano do fundamental?
É uma discussão sem foco. É um processo que dura e vai acompanhando o desenvolvimento da criança. E não tem um momento que você fala: aqui eu posso começar a alfabetizar. Porque já começou há muito tempo. Ou então: aqui está alfabetizada. Ela se apropriou do sistema alfabético de escrita, mas ainda não é capaz de ler com fluência ou escrever um pequeno texto. Mas no 3º ano, ela já é capaz. E no 4º ano, está melhor. É contínuo.
Mas sobre o conjunto de conhecimentos que se divide até 2º ou 3º ano, para que a criança esteja autônoma para aprender outras coisas, inclusive se aprofundar na própria alfabetização. Quando faz sentido ter uma régua, avaliar o que é esperado?
Só se pode fazer isso com uma decisão política, não pedagógica. Com os professores que temos, com a formação, condições, as escolas, se a gente conseguir que no 2º ano as crianças tenham se apropriado do sistema alfabético, então vamos marcar o segundo ano. É política, aleatória. mas é importante não deixar solto, sem critério.
Ao mesmo tempo que as faculdades não dão atenção à alfabetização, quem vai para esse segmento são em geral professores iniciantes. É possível ser otimista quando o contexto é tão fragilizado?
Sem mudar a formação do professor, ao menos para educação infantil e séries iniciais, não vamos avançar. Uma esperança é que a base force os cursos a começar a preparar os professores para atender o currículo. As redes vão poder orientar melhor, e os livros vão ter que se organizar pela base.
Raio X
Formação
Graduada em letras, doutora e livre-docente (1962) em educação pela UFMG
Carreira
Professora emérita da UFMG. Chefia o Núcleo de Alfabetização e Letramento de Lagoa Santa (MG). Com "Alfabetização - A Questão dos Métodos" (Ed. Contexto), levou o Jabuti de livro do ano