09 DE JULHO DE 2018
L.F. VERISSIMO
Refinado
Berço é tudo. Quem não tem berço não sabe de onde veio nem para onde vai e o que lhe cabe das bênçãos do mundo. Mesmo em países sem pedigree como o Brasil, em que a tradição deve se adaptar à umidade e aos insetos, berço é tudo. Não faz muito, perguntei a mamã se meu berço era mesmo de ouro e ela respondeu: "Folhado, mas não espalha". Mamã é uma pândega.
Para terem uma ideia do meio em que fui criado: certa vez, tive que descrever ao médico da família a cor da minha expectoração, numa das minhas gripes infantis, e respondi "verde Watteau". Instado por papá a ser mais específico, disse que meu catarro lembrava o céu aquoso no fundo do quadro Les Plaisirs du Bal, do mestre do rococó francês. Desconfio que o médico da família me receitou um purgante forte, estranho remédio para uma gripe, por pura implicância com a minha precocidade.
Durante toda a vida, tive que enfrentar o ressentimento dos menos afortunados. Meus colegas de internato na Suíça, quando me pediam para mostrar onde ficavam nossas propriedades no Brasil e eu dizia que nossas propriedades eram o Brasil, me chutavam. Tenho o gosto refinado como o sal do Himalaia. Certa vez, pulei no palco durante um concerto regido por Von Karajan para corrigir o dedilhado do spalla e fui retirado à força, esperneando e gritando, sob vaias: "Alguém tinha que defender o Beethoven!".
Sou filho único. Mamã só teve a mim. Segundo ela, toda mulher deve ter a experiência de um parto na vida, mas dois já é mania. Como vingança, eu fingia que não conseguia distinguir mamã das minhas babás e até sugeri que usassem crachás, para facilitar a identificação.
Nunca entendi muito bem o que papá faz. A resposta que ele dá - "Qualquer coisa" - não ajuda. Sei que descendemos de portugueses que chegaram ao Brasil com as primeiras caravelas e desde então não pararam de explorar os nativos. Nossa família era a maior dona de escravos do Império e papá ainda mantém escravos clandestinamente nas suas plantações e engenhos, por motivos sentimentais. Papá foi o último da nossa linhagem a nascer em berço de ouro maciço. Estudou na Inglaterra e também me mandou estudar na Europa, onde, ao contrário dele, adquiri uma consciência social, comecei a pensar seriamente na situação do meu país e dos meus conterrâneos, e tomei uma decisão: nunca mais voltar da Europa.
Papá pagou meus anos de conservatório e de Cordon Bleu e me mantinha na França com remessas ilegais, ajustadas conforme o preço dos Bordeaux da temporada. Apesar da distância, comecei a notar uma estranha relação entre a minha vida e a situação do Brasil. Quanto mais brutal fica a vida aí, mais depurados ficam os meus gostos aqui. Estou magro e lúcido, substituí a digestão de sólidos pela ruminação de teorias abstratas. Sinto que a situação do Brasil se deteriora à medida que me rarefaço.
Chegou uma mensagem inquietante de papá. Está difícil mandar minha mesada em dinheiro. Algo a ver com Lava-Jato, seja lá o que for isso. Papá tem investido em outras áreas e pergunta se eu me importo de receber em cocaína. Olho-me no espelho, e estou tão rarefeito que quase não me enxergo.