terça-feira, 31 de julho de 2018


31 DE JULHO DE 2018
CARPINEJAR

A dedicação exclusiva

O telefonema não é mais dedicação exclusiva.


Ninguém mais liga para você sem fazer mais nada, as pessoas estão entretidas sempre com uma outra tarefa. Dirigem, trabalham, escrevem mensagens no WhatsApp, postam fotos, movimentam-se pela casa. Dá para notar pelos ruídos externos. Às vezes, o contato é feito no viva-voz e a voz some do alcance por breves momentos. Ou a acústica é vazada e a descarga surge, estridente, ao fundo.

Somos secundários quando recebemos uma ligação, somos um dos interesses no caminho, não mais um destino.

Ninguém telefona para falar só com você, é uma hiperatividade irritante. Perdemos o dom de nos dedicarmos unicamente a alguém, sem concorrência, sem fugir com o pensamento, sem conversas paralelas e cumprimentos a terceiros, numa atenção plena e amorosa.

Durante minha infância e adolescência, o telefone era fixo, preso a um fio como um cachorro perigoso a uma coleira.

Nas residências, existia até a mesinha de madeira própria ao aparelho, com uma toalha de crochê por baixo. Ao lado, sentava-se em uma poltrona sem espaldar, para se dedicar ao ato. O cenário formava uma espécie de oratório da fofoca, uma capela para as conversas. Não se saía da salinha.

Disputávamos o uso do telefone com a família. Aquele que queria ligar para alguém permanecia de pé, próximo, forçando uma despedida com griteiros. Parecia fila ansiosa de banheiro.

Corria-se apenas o risco de o pai ou a mãe levantar silenciosamente o gancho da extensão para acompanhar o teor de algum relacionamento, se já havíamos avançado o sinal.

Parávamos com solenidade para um trololó prazeroso, para receber as descrições do dia, para pôr em dia os assuntos, para saborear a narração das amizades. Não tinha como se distrair. Lembro que a orelha esquentava devido à intensa imobilidade.

Estamos hoje em todos os lugares ao mesmo tempo e em nenhum lugar de verdade.

carpinejar@terra.com.br - CARPINEJAR