09 DE JULHO DE 2022
J.J. CAMARGO
COMO SE A DOR FOSSE NOSSA
Adoecer é ruim porque testa a nossa capacidade de enfrentar a ameaça e conservar a lucidez para seguir vivendo como se tudo tivesse vindo para ser passageiro, sem ter nenhuma certeza de que será.
Se administrar o próprio medo já é um desafio, imagine-se quando o alvo é uma das nossas crias, que parecerá mais indefesa do que nunca. Não temos ideia do que passará naquela cabecinha que de uma hora para outra, mirando a seriedade dos pais, intuiu que boa coisa não devia ser e desaprendeu de sorrir.
O acompanhamento do sofrimento de um filho é o maior desafio que se pode experimentar, independentemente de que idade a nossa cria tenha. A evidência de que se trata de um câncer, com tudo o que essa doença tem de estigmatizante multiplica a angústia, transforma esta experiência em indescritível, cruel e única.
Como nunca estamos preparados para adoecer, a reação inicial é de estupefação. Depois da fase de revolta (por que comigo? O que minha família fez para merecer?), começamos a recrutar forças desconhecidas para enfrentar um inimigo que não marcou hora para aparecer.
A ida ao hospital para os procedimentos diagnósticos arrastou uma família tresnoitada, com olheiras de quem espera que alguém, por favor, anuncie que está tudo bem, foi apenas um pesadelo.
A confirmação de que era câncer, mas de um tipo com grande probabilidade de cura, ainda que o caminho fosse longo, não mudou o humor, porque tudo o que os médicos diziam pareceu forçado. E além disso, que história é essa de câncer curável?
E então, com o que sobrou de coragem, traçou-se um plano terapêutico e a preparação para a longa jornada principiou com a colocação de um cateter venoso profundo, chamado portocath, um recurso técnico que pode ser visto com a construção de uma trincheira, que permitirá que todas as drogas sejam administrados sem sofrimento, exceto, naturalmente, náusea, vômito, mal-estar e emagrecimento.
A fase inicial é assustadora porque, tendo como única alavanca a esperança, cada dor aleatória é uma nuvem de incerteza, e cada nova amostra de sangue, outra noite de sono aos solavancos, porque era evidente que havia alguma suspeita pairando feito uma ameaça, de que qualquer coisa pudesse ter saído do previsto.
Cada centímetro do tumor reduzido pela ação da quimioterapia mereceu um festejo, que serviu para atenuar o pânico que havia gerado a informação de que um transplante seria indispensável. Quando a biópsia de medula confirmou que havia tecido para até mais de um transplante, a perspectiva de recuperação plena encantou os pais, mas não diminuiu a intensidade das orações da avó, completamente convencida que quimioterapia sem devoção não é tão confiável.
Feito o transplante, um novo fantasma foi incluído no roteiro das madrugadas insones: não podia haver infecção nesse período de extrema redução das defesas imunológicas. E então qualquer sinal, por ridículo que fosse, era objeto de pânico dos pais, rigorosamente determinados a não permitir que o medo chegasse ao filhote.
E então, durante meses, os exames se repetiram normais e tudo parecia promissor, mas como ter certeza de que a certeza do médico não estava superestimada? Passaram-se semestres até que chegou o dia em que a oncologista pediu que agendassem com o cirurgião a retirada do tal cateter, o que metaforicamente significava que, com a guerra terminada, não havia sentido manter a tal trincheira.
Foi esse sentimento que compartilhamos, numa despedida cheia de afeto, quando nos abraçamos, pela última vez, na porta do bloco cirúrgico.
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