sábado, 23 de julho de 2022


23 DE JULHO DE 2022
CARPINEJAR

Peito ou asa?

O casal de velhinhos já havia completado bodas de ouro, cinquenta anos de cumplicidade e cuidados recíprocos com o frio. Na véspera de sair, ela o lembrava da boina, ele a lembrava da manta.

Numa noite de inverno gaúcho, os dois foram jantar no apartamento da filha, no Menino Deus. Ela preparou uma galinha assada no forno, do jeito antigo, dourando a ave com o pincel dos temperos. Na hora de servir, a filha perguntou para a mãe: prefere peito ou asa?

A mãe enrubesceu, titubeou e disse: - Asa! Seu marido a interrompeu: - Como asa? Sempre a servi com o peito.

- Pois é, eu gosto mesmo é de asa - ela explicou. Um desconforto dominou a cena. A filha tentou ajeitar o ruído de comunicação, o silêncio esquisito, agora perguntando ao pai o que ele preferia: asa ou peito?

- Peito! - Ele quase gritou, não controlando a determinação do seu desabafo. - Como peito? Sempre separei para você a asa - atalhou a esposa.

- Pois é, sempre gostei mais de peito. Ambos se entreolharam com espanto, e começaram a rir. Desencadearam uma crise de risos sem precedentes, sem trégua. Chegava a doer a barriga, iam para trás e para frente como se estivessem numa cadeira de balanço imaginária, não nas cadeiras fixas ao redor da mesa.

A filha não entendeu qual o motivo para desenfreada graça. Era para chorar, não para rir. Jamais tinha testemunhado gargalhadas sinceras e intermináveis dos seus pais. Ficou até assustada, com medo de que se engasgassem e passassem mal.

Durante o casamento de décadas, um tentou ser mais gentil do que o outro, e assim se anularam. Entenderam errado o que o seu par apreciava e se prontificaram a fazer renúncias. Amor não é telepatia. O casal descobriu isso tarde demais. Mas antes tarde do que nunca.

Adivinhar é um risco, deduzir é temerário, leituras de mentes geram sempre enganos na transcrição ao papel.

Eles acabaram sendo vítimas do excesso de educação. Por não expor o que desejavam, ela comeu peito quando queria asa, ele comeu asa quando queria peito. Ninguém nunca fez objeção, acordaram que era assim desde a primeira galinha juntos. Não esclareceram a falha. Um deixava para o outro a sua parte favorita, jurando que agradava e realizava uma provação de amor.

- Que bom que não morremos com esse equívoco - ela suspirou, aliviada. - Dizem que galinha cisca para trás. Essa galinha foi longe no passado - ele brincou.

O casal de velhinhos se beijou enternecidamente. Um selinho prolongado, como aquelas cartas de outrora fechadas com a cola da saliva. - Sabe o que é o melhor de tudo? - Ela questionou.

- Não, o quê? - Ele ficou curioso. - Veio uma grande esperança: ainda temos muito a nos conhecermos. Tão triste quando não há nada mais a descobrir em quem amamos.

Pela primeira vez na vida, lado a lado, a esposa se deliciou com a asa (seus olhos voavam plenos), o marido degustou o peito (com a altivez dos ombros erguidos), e repetiram a porção três vezes, para compensar o tempo perdido.

CARPINEJAR

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