segunda-feira, 27 de maio de 2024


27 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Pandora e mãezinha

Este maio já é, historicamente, o mais cruel de nossos meses. É como se tivéssemos aberto a proibida caixa de Pandora, libertando de seu interior os males até então desconhecidos pelos gaúchos em tamanha escala e violência: ciclones, tempestades, enchentes, mortes, desaparecimentos.

Precisamos encontrar um jeito de fechar a caixa, como na mitologia grega, e deixar nela somente a esperança. Enquanto não saímos do labirinto do looping, seguimos confusos, desorientados, incapazes de decidir se devemos ficar em casa ou não com uma nova chuva.

Em Porto Alegre, qualquer alagamento ressuscita a enchente. Não há mais enfrentamento normal de imprevistos climáticos. Se não é o rio que transborda, são os bueiros entupidos, são os arroios cheios. As casas de bombas - somente 10 das 23 estão ativas - não conseguem frear o avanço das águas.

A população testemunha mais uma vez o apocalipse do gêiser nas calçadas, das avenidas interrompidas, da necessidade de resgates por barco e do desencontro de informações entre a prefeitura e a realidade.

Quando estávamos engatinhando para o recomeço, limpando melancolicamente as casas atingidas pelas cheias, fomos arremessados de volta ao pesadelo, com o retorno da inundação e - agora pior - o deslocamento dos entulhos pela correnteza, para prejudicar ainda mais o sistema de drenagem. A faxina do comércio e das residências se mostrou precipitada. O DMLU não contou com tempo de recolher as toneladas de mobiliário estragado. Apenas engrossamos a sujeira boiando, obstruindo de vez as bocas de lobo.

Menino Deus, Centro, Cidade Baixa e 4º Distrito tornaram a submergir, e a Zona Sul, até então a salvo, foi afetada. Humaitá permanece ilhado e sem assistência. E ainda choverá hoje, e choverá amanhã. Jamais imaginaria que minha mãe faria aniversário no meio desse pandemônio. Ela completa 85 anos hoje.

Não há mínimas condições de celebrar diante de dilúvios sucessivos e notícias aterradoras de socorro e suplício de nossos conterrâneos. Eu queria ter dado para ela uma festa inesquecível, com residência cheia e seus quatro filhos adultos e cinquentões disputando para ver quem ficaria ao seu lado para soprar as velas. Não é possível oferecer o que você merece, mãezinha.

E dói sentir o oco, o vazio, o vácuo deste ano, porque, depois que se envelhece, todo aniversário é decisivo: temos consciência de que pode ser o último.

Peço desculpas dentro dos parabéns. Será uma cerimônia discreta, de poucas palavras, com a pizza Califórnia de que tanto gosta, talvez com o noticiário ligado ao fundo, sem balões, sem enfeites, sem excessos.

Mesmo que se assemelhe a um dia comum, de modo nenhum o é, trata-se de mais um dia deste maio heroico, mais um dia da coragem, mais um dia de abnegação e sacrifício, mais um dia em que nossa alegria se resume a estarmos vivos.

CARPINEJAR

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