segunda-feira, 24 de junho de 2024


24/06/2024 - 06h00min
KELLY MATOS

O som que dói 

O fenômeno ocorre porque houve, pra nós, algo como uma quebra de confiança, sentimento semelhante ao que experimentamos quando descobrimos uma traição. 

Entre os muitos elementos potencialmente traumáticos que a enchente de maio despejou sobre nós, gaúchos, há um que passou a nos atormentar sem pedir licença: ouvir o barulho da chuva. Se antes o som da água caindo poderia significar serenidade, relaxamento e uma aparente calmaria – quem sabe, um dia “bom pra dormir” –, agora, ao menor sinal de nuvens escuras, o coração aperta, a angústia invade o peito e a trilha sonora, antes perfeita para o sono, toma o rumo oposto, nos impedindo de adormecer. 

Voltou a chover. Que pesadelo. Será para sempre assim? 

Agora, ao menor sinal de nuvens escuras, o coração aperta, a angústia invade o peito. O fenômeno ocorre, explica a psicóloga Arieli Groff, especialista em luto e traumas, porque houve, pra nós, algo como uma quebra de confiança, sentimento semelhante ao que experimentamos quando descobrimos uma traição. Antes, ouvir barulho de chuva nos remetia, de modo geral, a notas de calmaria, relaxamento, era um som capaz de nos fazer desacelerar. 

Não à toa, diversas meditações guiadas têm esta trilha ao fundo. Eis que maio surgiu, e a chuva nos machucou profundamente. Perdemos amigos, familiares, a casa e os móveis conquistados com o suor de uma vida inteira. O som até outrora meditativo, agora se tornou gatilho que remete a cenas de horror e desespero: pessoas no telhado pedindo socorro, água alagando regiões inimagináveis, o bebê enrolado em uma mantinha e sendo resgatado por bravos agentes em um helicóptero. 

Difícil. 

Tal como na quebra de confiança da traição, há relações que jamais voltam a ser o que eram antes. Casais que não conseguem mais se olhar, amizades que não tornam a ser o que eram, justamente por conta dessa ruptura, desse medo que sentimos de que a dor volte a se repetir. 

É nesse estágio que estamos. Machucados, traídos pela chuva. Será possível reconstruir nossa relação com ela? Difícil. É o tempo que trará essa resposta. Recuperar confiança em alguém pode levar meses, anos. E, ainda assim, pode ser que nunca mais volte a ser aquilo que um dia foi.


24 DE JUNHO DE 2024
CARPINEJAR

Freguesia invertida

Inverteu-se a freguesia. É a terceira vitória consecutiva do Inter em Gre-Nal, quebrando a escrita de uma década e entrando no G-6 do Brasileirão com dois jogos a menos. Virtualmente, poderia ser vice-líder.

Houve o típico gol de pebolim do clássico, naquele bate-bate para se confirmar o tento contra de Gustavo Nunes a partir de cabeçada de Vitão. Ainda existiu a possibilidade de ampliação do placar colorado com duas bolas seguidas na trave, de Wesley (junto de Alan Patrick, o grande nome do jogo) e de Aránguiz.

Na cigania, o Inter tem se adaptado melhor, com 10 pontos nas últimas cinco rodadas. Se aquele pênalti no último minuto a favor do Vitória não tivesse acontecido, Coudet estaria radiante. O batismo de fogo vem sendo improvisar com redução drástica de opções. É um período de resiliência a se superar, pois falta pouco para a retomada do Beira-Rio, restaurado em prazo recorde, e o retorno dos selecionados da Copa América.

No outro lado da gangorra, Grêmio se atola no Z-4, no fogo-fátuo da lanterna, com estapafúrdias seis derrotas sucessivas no certame nacional. É caso de UTI, de respirador, de guinada, de ruptura. Não há como confiar que é uma fase, muito menos acreditar no bordão otimista do rebaixamento: não tem time para cair.

Eduardo Coudet, numa condição hipotética de comandante do Grêmio, com o retrospecto de Renato Gaúcho na temporada, jamais sobreviveria, estaria de regresso à Argentina há alguns meses. Coudet chega a ser criticado e posto em dúvida apresentando 72% de aproveitamento, acumulando 20 vitórias e sofrendo somente quatro derrotas. Imagine se ostentasse os 55% de aproveitamento de Renato, com o triplo de derrotas (12).

Se o técnico gremista não fosse uma estátua, já teria sido trocado. Já teria sido sacrificado. Parece que Renato Gaúcho se tornou maior do que o Grêmio, a ponto de se duvidar da necessidade de sua dispensa.

Ruim com ele, pior sem ele - eis o que pensam os torcedores mais supersticiosos. Até porque na terceira queda para a B, em 2021, testemunhamos uma narrativa similar, de Renato começando o ano.

Partilha-se a concepção mágica de que ele possui algum trunfo na cartola e logo vai dar a volta por cima. Seu trunfo está machucado, Diego Costa, ou convocado, Soteldo. Não resta nenhuma força ofensiva. JP Galvão alcançou a proeza da abstinência total, um Tréllez tricolor. A bola foge dele.

O fiapo de esperança que segura Renato Gaúcho é o Fluminense fragilizado, adversário das oitavas de final da Libertadores, pois o plantel das Laranjeiras é uma sombra pálida daquele campeão da América - o típico caso da equipe que envelheceu mal.

Mas é um confronto que está marcado para longe. Ainda é distante. Ainda é remoto.

A tragédia se avizinha. O grande risco do presidente Alberto Guerra é a preservação da comissão técnica para início de agosto. Depois, uma recuperação talvez seja excessivamente inviável numa tabela impiedosa de pontos corridos.

Caso ocorra um tropeço, não existirá nem a justificativa para ter adotado a imobilidade, a ausência de reação administrativa. Tarefa complexa que desponta no horizonte do Humaitá, agravada pela demora da reforma da Arena.

Só a torcida perto, só a avalanche provocariam uma moderação da crise, mas não uma solução.

O tempo é inimigo do Grêmio. _

Se o técnico gremista não fosse

uma estátua,

já teria sido trocado. Já teria

sido sacrificado

CARPINEJAR

24 DE JUNHO DE 2024
CLAUDIA LAITANO

Três espelhos e uma reflexão

"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora para dentro." A frase está no conto O Espelho (1882), de Machado de Assis. O personagem, talvez vocês se lembrem, é um jovem alferes que se embriaga com a "alma exterior" que a nova função lhe confere, ou seja, a imagem de distinção que a farda projeta. No sentido inverso, sua alma de dentro parece encolher, até o ponto em que o rapaz só consegue ver a si mesmo no espelho, com nitidez, quando está fardado: "O alferes eliminou o homem".

Oitenta anos depois, outro conto intitulado O Espelho (1962), sobre outro jovem que perde a capacidade de ver sua própria imagem. Na história de Guimarães Rosa, o personagem se espanta com a discrepância entre o rosto externo, projetado no espelho, e uma "vera forma" que ele passa então a perseguir. Procura tanto que se perde completamente: o espelho já não reflete imagem nenhuma. Reduzido à "total desfigura", ele se pergunta: "Não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma?".

Entre os dois contos brasileiros, um romance italiano. A História de Um, Nenhum e Cem Mil (1926), de Luigi Pirandello, também começa diante de um espelho - e, à certa altura, por coincidência (imagino), fala de um "Deus de dentro" (a fé íntima) e de um "Deus de fora" (a Igreja). O jovem Vitangelo Moscarda está examinando o próprio rosto quando sua mulher observa que ele tem o nariz um pouco caído para a direita, detalhe que ele mesmo nunca havia notado. O incidente banal é suficiente para detonar uma crise existencial de grandes proporções. Quem afinal ele é? A pessoa que sempre pensou ser ou a que os outros veem?

E se cada pessoa que ele conhece o enxerga de uma forma diferente, quantas versões dele existem? E qual delas seria a verdadeira?

Escondida em um filme aparentemente despretensioso, Assassino por Acaso, de Richard Linklater, a resposta é que talvez não exista mesmo uma versão fixa daquilo que consideramos o nosso eu mais verdadeiro. A partir de uma história divertida, baseada no caso real de um homem que se fazia passar por matador de aluguel para prender pessoas interessadas em eliminar seus desafetos, Linklater reflete sobre a construção da personalidade e a noção de identidade. Resumo da ópera: se o universo não é fixo, você também não é. Apenas tente ser o que gostaria de ser - e se esforce para dar certo. _

Linklater reflete em seu filme sobre a construção da personalidade e a noção de identidade

CLAUDIA LAITANO

24 DE JUNHO DE 2024
PARA SORRIR

PARA SORRIR

Para sorrir

Deu pra ti Baixo Astral reúne sucessos locais

Festival

Iniciativa que começa hoje e vai até domingo leva música e 10 espetáculos para adultos e crianças ao Teatro CIEE-RS Banrisul, em Porto Alegre. A renda da bilheteria será revertida para profissionais da cultura afetados pela enchente, e as doações terão como destino instituições do Estado

A programação começa hoje e vai até o domingo, em Porto Alegre, no CIEE-RS Banrisul. A abertura, às 20h, será com o lançamento do videoclipe colaborativo da canção O Amanhã Colorido, de Duca Leindecker, que contou com o próprio compositor e nomes como Paulo Miklos, Valéria Barcellos e Humberto Gessinger. Ainda haverá show com artistas gaúchos tendo a Casa Torta como banda de apoio. A entrada para hoje é gratuita, com retirada de senhas pela Sympla.

O videoclipe e o show vieram da ideia do produtor cultural Edgar Ruther de fomentar o mais rápido possível o setor. Foi em uma conversa com o presidente do Banrisul, Fernando Lemos, que ele recebeu o apoio para o projeto, chamado Pra Poder Seguir. E mais: abraçar também outra iniciativa, Deu pra ti Baixo Astral. Assim, foi criado um trabalho unificado.

- Chega uma hora em que o músico que está sem tocar, assim como o artista de teatro que está sem atuar, precisa dessa renda para ir ao supermercado. A ideia do projeto é reverter a bilheteria para a classe, as instituições e muita gente que está no back- stage - explica Ruther.

Papel fundamental

CARLOS REDEL


24 DE JUNHO DE 2024
EDITORIAL

EDITORIAL

A compensação das perdas de ICMS

Aguarda-se que tenham uma boa evolução, nesta semana, as negociações entre o Palácio Piratini e o governo federal sobre compensações de perda de arrecadação de ICMS devido à paralisação de parte da economia gaúcha após a enchente de maio. É de interesse do Estado, mas também dos municípios, que têm direito a 25% dos recursos oriundos desse imposto. O tema deve ser tratado em uma reunião em Brasília entre o governador Eduardo Leite e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

O governo gaúcho apurou que, de 1º de maio a 18 de junho, a receita de ICMS foi R$ 1,58 bilhão aquém do esperado. As estimativas apontam que, ao longo do ano, as perdas alcançariam R$ 10 bilhões. Assim, as prefeituras deixariam de receber R$ 2,5 bilhões. Deve-se acreditar que o governo federal, cumprindo com a promessa de auxiliar o Rio Grande do Sul, será sensível à demanda.

A despeito da arrecadação afetada pelas atividades econômicas prejudicadas e da destruição da infraestrutura, Estado e municípios seguem com as despesas ordinárias, como serviços básicos prestados à população, salários e aposentadorias. Foram acrescentados ainda gastos extraordinários surgidos com a tragédia climática. 

Deve-se lembrar que os recursos originados da suspensão da dívida do Estado com a União só podem ser usados para desembolsos de reconstrução, como a recomposição da infraestrutura. O governo gaúcho pede uma ajuda semelhante à adotada na pandemia. Propõe que, a cada dois meses, verifique-se a diferença da arrecadação efetivada com a de igual período de 2023, corrigida pela inflação. O que ficasse abaixo seria compensado pela União, uma espécie de seguro-receita.

Em entrevista ao jornal Valor, na semana passada, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, apresentou uma perspectiva diferente. Apesar de assegurar boa vontade do Planalto e admitir estudos para auxiliar o Estado, avaliou que a economia gaúcha terá uma recuperação acelerada no segundo semestre devido ao estímulo da reconstrução e aos recursos transferidos às pessoas físicas. Assim, o efeito no PIB, ao fim, seria nulo. E a arrecadação perdida nos primeiros meses seria recuperada. Se mesmo assim existisse uma diferença no encerramento do ano, a compensação seria feita de alguma forma.

Trata-se de uma visão bastante otimista. Caso se confirmasse, seria um cenário extraordinário. Mas é preciso lembrar que, quase dois meses após o início da enchente, persistem dificuldades logísticas, estradas seguem interrompidas e um grande número de empresas de regiões importantes está longe de voltar a operar normalmente. A incógnita sobre quando o aeroporto Salgado Filho será reaberto é outro elemento a elevar as incertezas de uma série de setores relevantes.

Os compromissos do Estado e dos municípios gaúchos, porém, não esperam e batem à porta a cada mês. É o que o governo federal deve considerar para não tardar com uma ajuda de curto prazo. 


24 DE JUNHO DE 2024
QUEDA DE BRAÇO

QUEDA DE BRAÇO

Agenda conservadora testa força do governo Lula no Congresso

Derrotas refletem pauta de costumes da maioria conservadora da Câmara dos Deputados e do Senado e as divisões internas nos partidos. Com menor base aliada desde a redemocratização, governo espera fortalecer articulação com mudanças no Ministério previstas para a virada do ano.

A aparente fragilidade não se traduz na pauta econômica, aprovada quase sempre com ampla maioria, mas reflete dificuldade contumaz na articulação política do governo federal, com elevado grau de traições nos partidos aliados.

A atual sensação de crise deve refluir nos próximos dias, com o esvaziamento do Congresso pelas festas juninas no Nordeste e os preparativos para a eleição municipal. A médio prazo, a pacificação vislumbrada nos corredores do Palácio do Planalto passa por uma arquitetura política que conduza Arthur Lira (PP-AL) à Esplanada dos Ministérios e eleja ao comando da Câmara e do Senado parlamentares mais alinhados ao governo.

Atual presidente da Câmara, Lira representa a dualidade enfrentada pelos articuladores do governo. Com enorme influência sobre os pares, sobretudo sobre integrantes das bancadas de direita e do centrão, manobra a pauta e o regimento para pressionar e constranger o Planalto. Criando dificuldades para oferecer facilidades, dá vazão a medidas econômicas, mas freia pautas identitárias, ao mesmo tempo em que acelera projetos de viés conservador. Por vezes, é obrigado a recuar, como no projeto de lei que equipara o aborto ao homicídio.

Para fugir dessas armadilhas, o governo costura acordo segundo o qual não apresenta candidato à presidência da Câmara, deixando Lira indicar o sucessor. Na sequência, leva o alagoano para a Esplanada. Nos bastidores, cogita-se o Ministério das Comunicações, pasta afeita às ambições de Lira por causa da capilaridade política e da proximidade com o poder, atributos que necessita para pavimentar o caminho ao Senado em 2026.

Juscelino

FÁBIO SCHAFFNER

24 DE JUNHO DE 2024
POLÍTICA E PODER

General Câmara pede pressa à União para usar casas vazias

O alarido de deputados federais adeptos da desinformação pode levar algum desavisado a acreditar que, de fato, o Rio Grande do Sul manda mais de R$ 63 bilhões para o governo federal e só recebe R$ 26 bilhões (os números variam de acordo com o interlocutor). Essa conta só faria sentido se o Estado e os municípios fossem responsáveis por 100% das políticas públicas, mas a responsabilidade é compartilhada.

É fato que o sistema tributário brasileiro é centralizador e que a União fica com a maior fatia do bolo, mas não se pode pensar apenas no que retorna via Fundo de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM).

Na conta do que a União repassa ao Rio Grande do Sul, é preciso considerar o pagamento de toda a massa de aposentados do INSS, os gastos com o Sistema Único de Saúde, aqui incluindo investimentos no Grupo Hospitalar Conceição e no Clínicas, as vacinas e os medicamentos especiais, o custeio das universidades e institutos federais, o subsídio ao crédito agrícola, os salários da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, a Embrapa, as Forças Armadas que atuam no Estado em tempos normais e em casos de calamidade, entre outros. Não se pode imaginar que vem de outro lugar que não dos impostos o dinheiro para projetos habitacionais em que as famílias pagam valores simbólicos.

Fundos especiais

A reclamação dos governadores do Sul e do Sudeste em relação ao que consideram privilégios do Norte e do Nordeste decorre da existência de fundos criados para garantir investimentos em regiões mais deprimidas.

Isso não significa dar crédito à afirmação de que Sul e Sudeste "sustentam os nordestinos", como dizem os preconceituosos. Boa parte da receita de impostos federais atribuída a São Paulo, por exemplo, cai nessa conta porque a sede dos grandes bancos e empresas fica no Estado mais rico do país, embora os consumidores sejam de diferentes Estados da federação. _

Valeu a pena a persistência do prefeito Helton Barreto (PP), de General Câmara: depois de mais de 30 dias de insistência para que a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) liberasse as 25 casas que estão disponíveis no município para abrigar desalojados pela enchente, surgiu uma luz no fim do túnel.

A SPU e a Caixa foram à cidade fazer a vistoria para liberar as unidades e prometeram autorizar a ocupação. A enchente destruiu 108 casas no município, e 40 famílias ainda precisam ser realocadas.

As residências foram construídas para moradia de militares quando a cidade passou a abrigar o Arsenal de Guerra. _

POLÍTICA E PODER

sábado, 22 de junho de 2024

18/06/2024 - 15h38min
J. J. CAMARGO 

Morrer é nunca mais estar com os amigos

A leitura de uma obra pouco reverenciada de García Márquez me trouxe uma valiosa lição

"Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia." (José Saramago)

De vez em quando uma revisita a Gabriel García Márquez é uma experiência rica em novas descobertas e muitas confirmações. Uma das suas heranças literárias menos reverenciadas é Doce Cuentos Peregrinos. Da primeira leitura, não lembro de nenhum daqueles contos como marcante, talvez porque durante muito tempo fiquei empacado na introdução, tão maravilhosa que Gabo poderia ter parado por ali e a edição já estaria justificada. 

Nela, Gabo conta um sonho que tivera em Barcelona, durante um tempo de autoexílio que passou por lá. Ele sonhou com a própria morte e, durante o velório e enterro, acolheu os melhores amigos sul-americanos, dos quais ele tinha muita saudade. No seu sonho, eles estavam todos muito elegantes, vestidos a rigor, e felizes de estarem juntos outra vez. Comeram, beberam, repassaram as melhores histórias, riram, choraram de rir e, por fim, de pura emoção.

Descobri logo que ele era uma referência afetiva sempre que algum acadêmico se dispusesse a falar sobre bom humor, afeto espontâneo e entusiasmo por viver.

No final da tarde quente de Barcelona, quando se preparavam para voltar, Gabo ainda continuava abraçado com eles, quando foi advertido que não podia acompanhá-los porque ele tinha morrido. Confessou então ter aprendido nesse momento o que significa morrer: é nunca mais estar com os amigos.

Essa proposta original do que significa morrer mexeu muito comigo.

Passados pelo menos 12 anos, provavelmente estimulado por um passeio recente pelo meu arquivo correspondência afetuosa, sonhei que almoçava em um restaurante próximo à Academia Nacional de Medicina com o querido professor Orlando Marques Vieira. Meu encantamento pelo professor começou na visita acadêmica, um ritual que precisa ser cumprido por todos os pretendentes a uma vaga como membro titular da Academia Nacional de Medicina. Quando liguei para agendar a visita, Orlando pediu que o encontrasse na sede do Colégio Brasileiro dos Cirurgiões, então presidido por ele.

No início da conversa, ele comentou: "Então teremos mais um gaúcho na Academia. E gaúcho de Porto Alegre?". Respondi: "Não, professor, eu nasci em Vacaria". E a conversa mudou de rumo: "Então você não vai estar sozinho na Academia. Numa viagem de carro para o sul, eu me encantei com os Campos de Cima da Serra, e dormi na tua Vacaria".

Pronto: o gelo estava quebrado, e como se fôssemos velhos amigos, seguimos conversando. Muitas vezes, quando nos saudávamos na Academia ele perguntava como andava a nossa Vacaria.

Descobri logo que ele era uma referência afetiva sempre que algum acadêmico se dispusesse a falar sobre bom humor, afeto espontâneo e entusiasmo por viver, fosse qual fosse a motivação da conversa.

No sonho, eu lhe contava de um simpósio que estou preparando na Seção de Cirurgia e que envolve a seleção das perguntas de mais difícil resposta, mesmo na opinião desse grupo de médicos experientes e bem resolvidos.

Como era previsível, as perguntas mais desconcertantes, seguidas das respostas mais inteligentes, brotavam da experiência de exercer a medicina durante décadas, movidos pela insaciável gratificação de cuidar do outro. O projeto é transformar esses relatos numa espécie de manual para os jovens médicos, que em geral fogem das perguntas mais difíceis por não saber como respondê-las.

Quando terminou o almoço do sonho, e o convidei para irmos para a Academia, como fizemos tantas vezes, ele me disse que infelizmente não poderia me acompanhar porque estava morto. E então, com o sorriso debochado que era a sua marca, me confidenciou: "Uma pena eu não poder participar deste teu simpósio, porque eu teria cada pergunta".

Eu sei que sim, professor, e tenho a dolorosa noção do quanto perdemos.

13/06/2024 - 11h23min

J. J. CAMARGO

Fazer coro com quem clasificou a velhice como “a melhor idade” é brincadeira de mau gosto.

"A despeito de todo progresso da medicina, ainda não há cura para um simples aniversário."  (Senador John Glenn, EUA)

Apesar do empenho que fazemos pela longevidade, ela é completamente imprevisível. E contrapondo-se à recomendação de vivermos disciplinadamente, o que significará muitas privações, envelhecer não é uma boa ideia. Só é festejada porque a alternativa, com tudo o que tem de definitivo, consegue ser pior. Muito pior.

Mas sentir-se velho e fazer coro com quem classificou a velhice como "a melhor idade" é no mínimo uma brincadeira de mau gosto. Se anunciada com insistência, já autorizaria submeter o sujeito à realização de exames específicos para avaliar a extensão do problema (mas não há o que temer, são procedimentos de imagem, indolores, tendo como único inconveniente o ruído da máquina, tratado preventivamente com protetores de ouvido).

Claro que essa recomendação não serve se você for médico, porque significaria estar à cata de uma dupla flagelação: eventualmente descobrir uma doença degenerativa, que com sorte pode ser lenta, mas será sempre progressiva, e tornar pública sua ignorância de que, se a ressonância mostrar umas tais manchas amarelas, não há objetivamente nada para oferecer, nem ao menos para desacelerar o processo.

No reencontro de dois velhos, especialmente depois de um tempo afastados, há uma disputa acirrada quando, no limite do ridículo, cada um tenta mostrar um desempenho físico/mental extraordinário, fingindo-se de modesto felizardo.

Na profilaxia da depressão diante da evidente decrepitude, recomenda-se fortemente a negação, que ao longo de toda a vida é considerada uma saída honrosa para a maioria dos nossos fiascos e desencantos, e deve ser escudada como uma valiosa reserva técnica na preservação da autoestima, ou o que sobrou dela.

No reencontro de dois velhos, especialmente depois de um tempo afastados, há uma disputa acirrada quando, no limite do ridículo, cada um tenta mostrar um desempenho físico/mental extraordinário, fingindo-se de modesto felizardo. Nesta condição, em reunião social, alguns conselhos são preciosos na prevenção de danos emocionais ou apelidos jocosos:

1) Não sente em sofás macios. Preserve em segredo quantos embalos você precisa para ficar em pé.

2) Na conversa em grupo, não force aparentar um super liberal na subversão dos costumes. Lembre-se que pode haver no grupo conhecidos antigos, que comentarão que você está muito mudado, o que na velhice é péssimo.

3) Não tente parecer espirituoso sem se assegurar de que lembra o final da piada.

4) Não se queixe do passado perdido, quando não houver mais tempo de mudar nada.

5) Se uma mulher jovem passar por perto, olhe noutra direção e evite qualquer comentário sobre a beleza, ou melhor, evite qualquer comentário. Lembre-se que o silêncio é um desvão estreito, onde a dignidade se esconde.

6) Evite falar de sexo, porque a sua plateia de veteranos estará dividida entre os que vão te achar inconveniente e os que te acharão mentiroso.

06/06/2024 - 12h49min
J. J. CAMARGO

As perdas na infância doem mais

Pais precisam ter tempo e sensibilidade para ouvir os filhos. Senão a narrativa própria pode ser pior do que a realidade

"Quando era criança, meu avô segurava a minha mão. Depois que envelheci, nunca mais soltei a mão dele." (Affonso Tarantino)

Verdade que, se conservássemos intactas a inocência e a ingenuidade das crianças, naufragaríamos no mundo hostil e competitivo que a idade madura nos reserva. Mas seria ótimo que, num mundo ideal, pudéssemos evitar essa "evolução" que, com o rótulo de maturidade, nos embrutece.

Por fantasia, as crianças têm pressa em se tornarem adultos, porque ignoram as maravilhas que deixarão pelo caminho. E os pais, que festejavam vê-los adolescentes responsáveis, logo descobrirão que a partir da conquista da autonomia pela prole toda a contribuição deles estará limitada à torcida silenciosa para que as crias deem certo e, por favor, não repitam todos os erros que cometemos. 

Os relatos que se seguem poderão ser entendidos como uma exaltação à espécie humana, na sua condição mais pura, a infância. 

Circulando por um abrigo da prefeitura, onde se acomodavam quase 200 flagelados da enchente, surpreendi um menino com um peixinho morto num copo d'água, que ele segurava com as duas mãozinhas de unhas sujas. O peixe, trazido pela enxurrada, tinha sido lavado da lama, e colocado num copo de água limpa. De quando em quando, ele cutucava o dorso do peixinho, na expectativa de que ele reagisse, e a falta de resposta explicava a tristeza do olhar quando ele perguntou: "A gente não pode soltar a mão da mãe, não é, tio?". Fiquei imaginando quantas vezes aquele pingo de gente ouviu essa recomendação desesperada enquanto eram resgatados da correnteza, na noite escura.

Um casal porto-alegrense, com a filha de quatro anos, abandonou o caos em que se transformou a cidade. Foram se refugiar no sossego da casa da praia. No segundo dia, impressionado com o silêncio que contrastava com o burburinho da cidade agitada pelo ruído frenético dos helicópteros e da sirene das ambulâncias, a garotinha comentou: "Acho que agora as pessoas pararam de morrer".

Mário Corso, que contou essa história com sua sensibilidade habitual, reforçou a importância de que os pais tenham tempo e sensibilidade para ouvir os filhos, porque senão eles construirão uma narrativa própria, com frequência pior do que a realidade. Nesta história, foi redentora a informação dos pais ao explicarem à filhota que o ruído na cidade, na verdade, significava que pessoas estavam sendo salvas. Com essa mensagem, o luto inevitável depois de qualquer perda se encerrará com a euforia do fim da catástrofe. E sem recaídas.

O menino, na solidão multiplicada pela orfandade, fantasiava que a morte era o único jeito de reencontrar o pai.

Em contraste, a persistência das fantasias ficou reverberando no Duda, um garotinho que, na fragilidade emocional de seus oito aninhos, viveu o horror da orfandade com a morte do pai num acidente, justo na idade em que o pai é o super-herói insubstituível. Tempos depois, caiu do telhado, fez um trauma abdominal severo, foi operado às pressas pelo doutor Octávio Vaz, um brilhante cirurgião carioca, e se recuperou rapidamente.

Passou a ser acompanhado no ambulatório pelo cirurgião que se encantara com a inteligência luminosa escondida atrás daquela carinha linda. Numa dessas revisões, a mãe confessou ao doutor Octavio estar preocupada com a frequência com que o Duda vinha sofrendo acidentes de gravidades variáveis. Levantada a suspeita pela percepção de um médico sensível, o Duda foi encaminhado a uma psicóloga. E então, o distúrbio emocional, sequela torturante de um luto não resolvido, escancarou-se: o menino, na solidão multiplicada pela orfandade, fantasiava que a morte era o único jeito de reencontrar o pai. 

Envelhecer só é festejado porque a alternativa consegue ser pior. Na profilaxia da depressão diante da evidente decrepitude, recomenda-se fortemente a negação

29/05/2024 - 12h02min
J J. CAMARGO

Tragédias desnudam os cruéis e os generosos

Eventos extremos colocam na vitrine nossos defeitos e nossas virtudes. Por alguma razão, ficamos mais chocados com os nossos defeitos do que encantados com as nossas virtudes

"Seja você mesmo. Todos os outros já existem." (Oscar Wilde)

Há uma mistura de inocência e boa-fé para justificar a tendência de se atribuir às grandes tragédias a capacidade de modificar a índole dos envolvidos.

Na verdade, as catástrofes não conseguem mais do que colocar na vitrine nossos defeitos e nossas virtudes. E, por alguma razão, ficamos mais chocados com os nossos defeitos do que encantados com as nossas virtudes.

Os cruéis e os generosos não se fizeram assim por influências externas circunstanciais. Eles já estavam prontos desde sempre, à espera de um acontecimento extremo que os desnudassem. E então, com igual naturalidade, os apresentasse ao mundo para espanto dos ingênuos e compensação silenciosa dos que já não se surpreendem mais porque viveram o suficiente  para antecipar reações em condições adversas.

O grande mérito da internet é garantir pernas curtas à mentira.

Quanto mais inesperado for um evento, mais eficiente será como gatilho revelador do caráter de cada um, porque retira a possibilidade de que o mau pareça bom, o que exigiria um tempo para ensaiar uma postura que seja minimamente convincente de uma virtude que não existe.

Mas mesmo com atitudes planejadas os falsos virtuosos correm o permanente risco de desmascaramento, porque sempre haverá alguém para desarquivar uma fala ou um vídeo, sempre haverá delatores.

Muito se tem criticado as redes sociais, que, fomentadas pelos mais variados modelos de sociopatia, se transformaram numa espécie de divã coletivo de uma sociedade que se esmera em renunciar aos valores básicos do convívio civilizado. Mas isso não obscurece o grande mérito da internet: garantir pernas curtas à mentira.

O arquivo virtual de tudo que dissemos, pensamos ou fingimos devia, pelo menos  teoricamente, tornar o nosso mundinho num lugar mais confiável, mas essa expectativa otimista subestima a cara dura dos cínicos, que sempre podem argumentar que aquilo dito foi retirado de um outro contexto. Esses argumentos mais chateiam do que convencem, por subestimarem a inteligência mediana das pessoas.

No meio de uma catástrofe como a que estamos vivendo, creio que nada é mais eficiente na identificação do caráter do que a emoção, um sentimento tão exigente de autenticidade, que até na arte da interpretação rapidamente se define os que nunca serão mais do que comediantes medíocres.

Parece também ingênua a pretensão de amestrá-los, com a tola intenção de ostentar solidariedade com o pesadelo coletivo, se no meio do discurso vazio os tipos não conseguem resistir à tentação de fazer uma graça, ignorando que não há nada mais inesquecível do que a desconsideração no sofrimento.

22/05/2024 - 13h45min
J. J. CAMARGO 

Como seremos depois da enchente?

Felizmente, os imprestáveis, por serem barulhentos, dão a falsa impressão de majoritários, mas são, e sempre serão, insignificantes

"A coragem é a maior das virtudes humanas porque garante todas as outras." (Winston Churchill)

Tenho dúvidas se sairemos melhores desta catástrofe, mas tenho certeza de que sairemos diferentes. E que ninguém que tenha tido a sorte de ser poupado pretenda recomeçar a vida como se nada tivesse acontecido.

Foi uma prova agressiva demais para ser considerada como uma mera intercorrência na vidinha monótona, da qual nos queixávamos por não saber valorizar a mesmice serena e previsível de um dia a dia, sem sobressaltos.

Entre ególatras e flagelados, aparecem as diferenças de humanismo, maturidade e resiliência.

Claro que aqueles que moram fora das zonas de risco não podem ser comparados aos traumatizados que viram a vida sendo arrastada pela correnteza feroz. Mas, no contexto geral, resultaram duas populações distintas: a dos que foram resgatados da avalanche de águas fétidas e agradeciam sem parar, e a dos que se queixaram da falta de água e de luz, e quando uma voltou antes da outra, tiveram que se submeter (veja só!) à tortura desumana de um banho frio. É exatamente nessa discrepância abismal de atitudes entre ególatras e flagelados que começam a aparecer as diferenças de humanismo, maturidade e resiliência.

Essa, aliás, é uma das habilidades marcantes das grandes tragédias: a separação entre os que saem de casa em busca de algum voluntariado que lhes atenue a sensação de impotência e os que fixam o olhar no único umbigo que lhes interessa. Como o caráter de cada um tem um gatilho muito rápido para revelar o portador, chama a atenção a disponibilidade dos bons para contribuir, assim como o surgimento dos oportunistas, que só pensam em aproveitar qualquer holofote para aparecer. Um exemplo é o autor de um bizarro comício em torno de um purificador de água, que o divulgou empolgado e ofereceu à claque que o rodeava mas, descuidado, não bebeu antes que o vídeo terminasse.

Como a diversidade é uma marca da espécie, começaram a surgir algumas excrescências, como a dos que nada fazendo se irritam com quem o faça. E há uma variante patética, a dos que esbravejaram de uma indignação que parecia sincera ao saberem que uma milionária fretara um avião para trazer alimentos, quando, na opinião oligofrênica do obtuso, devia ter usado o dinheiro gasto com esse aluguel para contratar uma frota de caminhões, mesmo que isso obrigasse a fome dos incautos a um alongamento do jejum já insustentável.

A desgraça macroscópica já devia ser suficiente, não precisava de tantos requintes de crueldade. Não há como não se deprimir com gente assaltando voluntários, e voluntários sumindo com doações, e o pobre dependente químico escolhendo os donativos mais valiosos para trocar por crack na saída do ginásio.

Quando o caos consegue ser também moral, nosso ânimo esmorece. E isso explica o despertar nas madrugadas de um sono mal resolvido, só para confirmar que não foi um pesadelo, aquilo está mesmo acontecendo. Tempos difíceis de levantar toda manhã e sair para a vida, essa que não precisava ser sempre tão real.

Felizmente, os imprestáveis, por serem barulhentos, dão a falsa impressão de majoritários, mas são, e sempre serão, insignificantes. Então, fiquemos com as coisas boas, como a atitude comovente do Atlético-MG que encheu sua arena com torcedores que naquele dia deveriam assistir ao jogo com o Grêmio, e vendeu ingressos para 36 mil mineiros, dispostos a ajudar gaúchos flagelados, que nunca terão a chance de abraçá-los em agradecimento. Ou com  Wilson Paim, que com a sensibilidade incomparável do seu poema/oração, colocou o Rio Grande inteiro a lacrimejar.

Felizmente, nós gaúchos somos muito mais do que as coisas ruins que nos acontecem, e, forjados num histórico de lutas, é certo que sairemos dessa. Do nosso jeito gaudério, de braços dados, silenciosos e tristes, mas agradecidos e confiantes de que a velha garra charrua que nos trouxe até aqui, essa nenhuma correnteza arrastará.

Gol anuncia mais voos em Canoas, Caxias do Sul e Pelotas

Gol vai passar de nove para 13 voos semanais na Base de Canoas, alternativa ao Salgado Filho
Gol vai passar de nove para 13 voos semanais na Base de Canoas, alternativa ao Salgado Filho

Depois de Azul e Latam, agora é a vez da Gol ampliar seus voos na Base Aérea de Canoas (Baco), que virou alternativa ao fechamento do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. O complexo está fora de operação desde 3 de maio, ainda sem data certa para retornar novos voos da Gol na Baco começam em 15 de julho. Além disso, a aérea informou, nesta quinta-feira (20), que ofertará mais voos em Caxias do Sul e Pelotas.

A frequência da aérea na cidade da Região Metropolitana vai passar dos atuais nove voos semanais diretos, que estrearam em 1º de junho, para 13 voos semanais. Serão quatro novas operações de ida e volta ligando Canoas ao Aeroporto de Congonhas na capital paulista. Até agora, os voos são para o Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Os voos na Baco passam a usar a janela noturna, autorizada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que também possibilitou a expansão das outras duas concorrentes. A Gol vai voar às terças, quartas, quintas e aos domingos entre Congonhas e Canoas, com partida de São Paulo às 17h35min e decolagem da cidade gaúcha, às 19h05min.

Latam amplia a operação em 30 de junho, com mais quatro voos semanais (oito ida e volta), e a Azul entra com o terceiro voo em 1º de julho, com mais quatro voos na semana, oito nos dis sentidos. No total, as três empresas terão 12 voos semanais a mais (24 considerando so dois sentidos).

Os embarques estão ocorrendo no terminal provisório montado no ParkCanoas Shopping. Os passageiros fazem o check-in no local e depois são levados de ônibus até a Baco. A orientação é que as pessoas cheguem três horas antes da decolagem.

Anac autorizou até 10 voos diários na Baco. Com as expansões anunciadas, ainda não se chega no teto e também não se tem mesmo número diariamente. Com isso, Canoas supre pequena parte do fluxo do Salgado Filho, que era de uma média de 140 a 150 voos diários.

Sobre o retorno do complexo da Capital, concessionária Fraport Brasil e governo federal falaram até agora em prazo até fim de dezembro. Mas a reabertura depende de diagnóstico da Fraport, prometido até meados de julho, e recomposição da pista e de equipamentos.

A expansão da operação da Gol no aeroporto de Caxias do Sul começa em agosto. De um voo diário para Congonhas, a aérea vai adicionar dois voos. A partir de 5 de agosto, entra a segunda ligação, e, no dia 12, a terceira frequência, segundo a companhia.
Em Pelotas, a Gol eleva em junho ainda a frequência de três para quatro voos semanais no Aeroporto Internacional João Simões Lopes Neto. De agosto até o fim de outubro, a frequência passará a seis dias, de domingo a sexta, com ligação para Guarulhos.
"O aumento da oferta de voos é de extrema importância para o resgate da força logística no Rio Grande do Sul. Os novos voos serão também cruciais para o incremento do transporte de cargas", destaca, em nota, Rafael Araújo, diretor executivo de Planejamento da Gol.
As operações nas três cidades são feitas com Boeing 737, com capacidade para 186 passageiros. A venda de passagens já está sendo feita, diz a Gol.


22/06/2024 - 09h00min
Martha Medeiros

Para manter a sanidade, não me afasto de onde estou

Nada de me socorrer no passado ou projetar um futuro que desconheço, este balé escapista que tonteia. Quem achou o filme "Dias Perfeitos" um tédio não percebeu o quanto a vida acontece a cada cena

Um dos filmes mais tocantes dos últimos tempos, Dias Perfeitos, de Wim Wenders, é de uma simplicidade repleta de sentidos. Quem achou o filme um tédio não percebeu o quanto a vida acontece a cada cena. Todo dia, o personagem Hirayama faz tudo sempre igual: escova os dentes, coloca o uniforme, pega um café na máquina automática e sai com o carro a fim de realizar seu trabalho como limpador de banheiros de parques públicos em Tóquio. No trajeto, escuta música em fitas K-7. À noite, lê um pouco, dorme e no dia seguinte retoma a mesma rotina, aparentemente idêntica.

O filme concorreu ao Oscar e já foi mais que comentado. Assisti em janeiro, mas só agora, revendo a antológica cena final, em que o ator Koji Yakusho dirige escutando Feeling Good, de Nina Simone, permiti que o choro e o riso do personagem, ambos simultâneos naquele close poderoso, se misturassem aos meus.

Janeiro parece que foi em outra vida. Em minha rotina, nada se mantém igual: há um sul em mim que adoece e um norte em mim que se expande – dentro do mesmo corpo. Caio, levanto, me deito, danço, alternando reações, conforme sou atingida pelas notícias do mundo ou pelos silêncios que encontro ao abrir minhas gavetas internas. Tudo é muito – e muito intenso. Alguém chamou de “tempo de desorientação”. Não tenho o nome do autor para dar o crédito, mas o parabenizo: que definição precisa.

Para manter a sanidade, não me afasto de onde estou. Nada de me socorrer no passado ou projetar um futuro que desconheço, este balé escapista que tonteia. Grudo no livro que estou lendo, absorvo a música que está tocando e fico atenta ao que me acontece agora, e do jeito que me atinge, de frente e por dentro. A vida mirou em mim e me acertou.

Com tanta presença, a solidão não entra. É o que Hirayama nos transmite no filme. Ele não passa os olhos: ele enxerga. Ele não finge que ouve: ele escuta. Ele sabe onde estão suas chaves, ele desce e sobe com cuidado os seus degraus, ele torna nobre o seu ofício desprezado, ele até disputa um jogo da velha contra um adversário invisível. Pertence ao mundo com inteireza, não aos pedaços. Quanto à questão digital, o filme é claro: não precisamos de mil, 10 mil, um milhão. Precisamos de um. De uma. A cada vez. Calmamente. É o que nos torna um planeta habitado.

Temos sido sugados por ralos tecnológicos que nos despejam em valas comuns, onde viramos números, algoritmos, seguidores sem rostos. Que essa bagunça virtual não corrompa nossa casa e nossa mente, os dois espaços sagrados da existência. E que a alma da gente não seja pulverizada pelos gigabytes. É uma luta diária não se deixar desorientar. A gente chora porque é difícil. E, ao mesmo tempo, ri porque consegue.

 Anatomia da depressão

questões incendiárias

questões incendiárias - Jaime Cimenti

Pessoas e instituições público e privadas estão envolvidas com o tema, em muitos países. O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras, 584 páginas, R$ 57,00), de Andrew Solomon, norte-americano, professor da Columbia University Medical Center e consultor de saúde mental da Yale, lançado em 2000, segue referência no assunto e tem sido editado no Brasil com tradução de Myriam Campello.

Pela sua amplitude temática e pela forma e conteúdo, a obra é um verdadeiro tratado sobre um mal que, em priscas eras, era visto apenas como melancolia e não era objeto de estudos aprofundados. A obra de Solomon foi eleita como um dos cem melhores livros da década de 2000 pelo jornal britânico The Times, venceu o National Book Award , foi finalista do prestigiado Prêmio Pulitzer e tornou-se best-seller internacional, publicada em mais de vinte línguas.
A partir de suas memórias pessoais, inúmeras entrevistas e de muitos estudos e leituras, Solomon convida, com rara humanidade, humildade, sabedoria e erudição, os leitores a uma jornada sem precedentes pelos meandros de um dos assuntos mais espinhosos, significativos e complexos de nossa atualidade. É uma leitura obrigatória para quem sofre ou conhece alguém que sofre de depressão.

Solomon fala de tratamentos, de medicações, de tratamentos alternativos e do impacto da doença nas várias populações demográficas. Solomon ensina sobre as implicações históricas, sociais, biológicas, químicas e médicas da depressão. A obra é abrangente, corajosa, humana, plena de compaixão e importante nesses momentos de tantas crises pessoais e coletivas.
Lançamentos
Escola da complexidade - Escola da Diversidade - Pedagogia da Comunicação (L&PM Editores, 256 páginas, R$ 32,00), do professor universitário, jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, fala do lugar da escola num mundo de mudanças, imagens, algoritmos, diferenças e inteligência artificial. Horizontalidade, liberdade, complexidade e diversidade estão aí.

A coragem de ser quem você é (mesmo não goste tanto disso) (Editora Planeta- Academia, 208 páginas, R$ 57,00), de Walter Riso, italiano, psicólogo e autor de livros de sucesso, é um livro para rebeldes que amam sua individualidade e pretendem exercê-la com liberdade e plenitude.

Questões incendiárias - Ensaios e outros escritos (Editora Rocco, 576 páginas, R$ 134,00), de Margaret Atwood, celebrada e premiada escritora, poeta, crítica literária e ensaísta canadense, apresenta uma série de ensaios sobre temas como: porque as pessoas contam histórias, quanto você e eu podemos nos doar sem sumir, como podemos viver no planeta, o que é a verdade e o justo e o que tem a ver zumbis com autoritarismo.

Acabou o pavio

Sim, pode acreditar, houve um tempo em que algumas pessoas tinham o famoso "pavio curto", eram chamadas de estouradas, esquentadas e sangue quente. Dizem que eram algumas, não muitas, as tais pessoas, que não tinham paciência para aguentar conversas, desaforos e outras coisas que não gostassem nos outros. "Não levo desaforo para casa", "dou um boi para não entrar numa briga e dou uma boiada para não sair dela", "quem diz o que quer, ouve o que não quer" eram algumas máximas dos esquentadinhos.
Hoje quase todo mundo parece ou é mesmo esquentadinho. Todo mundo com os nervos para fora da pele. Antes era nervos à flor da pele. Uma vez Hassan Rohani, na época presidente do Irã, foi à Itália. Os italianos, para não se estressarem mais do que o normal e, quem sabe, fazerem negócios de bilhões com o Irã, cobriram com caixas brancas estátuas de deuses gregos, romanos e nus femininos. Rohani poderia se ofender com os marmóreos genitais... Brillat Savarin disse que, quando a gente recebe alguém, deve fazer tudo para o convidado se sentir feliz em nossos domínios. Será que os gringos estavam certos? Interesseiros? Jeitosos? Ou será que se humilharam? Você decide.
Já em Paris, certa ocasião, estava marcado um almoço com o presidente da França e o presidente Hassan. Os iranianos disseram que não podia aparecer vinho ou outra bebida alcoólica na mesa. Dizem que os franceses são os italianos mal-humorados. Pode ser brincadeira ou estereótipo, mas si non é vero, é bem trovato. Imagina não pintar um vinhozinho em Paris, onde até uma loja do McDonald's teve que abrir exceção e servir vinho. Os franceses cancelaram o almoço abstêmio. E aí? Estavam certos? Deveriam ter tomado refri e água com os trilionários ou, quem sabe, poderiam ter tomado o vinho escondido no banheiro ou na cozinha. O lance não ficou legal. Os franceses podem ter perdido um baita negócio e os iranianos não degustaram as iguarias que os italianos ensinaram os franceses a fazer, há uns séculos atrás, quando Maria Antonieta reclamou da comida e mandou chamar uns chefs lá da Bota.
Esses tempos, uma mulher xingou feio um senhor no Big Brother porque ele estava dormindo de cuecas, na cama, ao lado dela. Pavio curto? Ou nenhum pavio? Depois os dois se desculparam e deram assunto para o antigo programa matinal da Fátima Bernardes. Ele ameaçou processar a esquentadinha.
Todo mundo anda falando tudo, toda hora, em qualquer lugar, bem alto. Aquela coisa de falar um por vez - quando um burro fala o outro murcha as orelhas - dançou. Aquela regra de ficar a um metro de distância dos outros, não ficou. Falar baixo, agir com delicadeza, anda escasso. Tomo mundo quer ter "atitude", e tipo assim, atitude nova-iorquina, bem cheguei, bem trio elétrico, patrola. Para que esperar o outro terminar de falar? Para que pensar que a vingança é um prato que se come frio? Hoje a galera quer comer o fígado do inimigo bem quentinho, na horinha.
A propósito
Antigamente havia manuais de boas maneiras. Célia Ribeiro, Danuza Leão, entre outras, escreveram livros sobre conviver em sociedade e alguns foram best-sellers. Estão fora de moda. Algumas regras e dicas permaneceram, mas, no geral, as pessoas se comportam como bem entendem. Sim, não há sociedades sem regras, mas ultimamente há falta de regras em quase todos os setores, públicos e privados. A vida é curta, passa rápido, melhor entender que somos anjos de uma asa só, que dependemos dos outros para voar. Quando encontramos com alguém, é bom sair melhor do que quando chegamos. Não perca, não encurte seu pavio, aumente-o. Conte até mil. Será melhor para vocês e para o mundo. 
(Jaime Cimenti)