26
de dezembro de 2012 | N° 17294
MARTHA
MEDEIROS
O que é que a baiana tinha?
Ontem
faleceu, aos 105 anos (a mesma idade em que se foi o grande Niemeyer), dona Canô,
cuja trajetória acompanhávamos como se fosse a avozinha do Brasil. De onde
surgiu sua fama? Nem ela sabia explicar: “Apenas fiquei conhecida por causa de
meus dois filhos que nunca se esqueceram de onde vieram nem da mãe que têm”. O
curioso é que ninguém nunca ouviu falar sobre a mãe de Gilberto Gil ou de Gal
Costa, pra citar os outros “doces bárbaros”. O que é que dona Canô tinha,
afinal?
Sem
possuir a exuberância dos filhos cantores, dona Canô era, ao contrário,
fisicamente minguada, discreta, pequena em estatura. Porém exalava força moral,
trabalhava por benfeitorias para sua Santo Amaro e era uma mulher posicionada
politicamente, gostassem ou não de suas escolhas – foi íntima amiga do senador
Antonio Carlos Magalhães e depois se rendeu a Lula, defendendo-o publicamente,
como no episódio em que rebateu as críticas feitas por Caetano, quando esse
declarou apoio a Marina Silva dizendo que ela sabia falar, ao contrário do líder
petista, que era grosseiro. “Caetano é só um cantor, não precisa ofender nem
procurar confusão”, declarou ela na época. Arretada, a velhinha.
Dona
Canô era uma mulher de personalidade forte, mas de hábitos simples. Aliás, como
Niemeyer. Lógico que o arquiteto está eternizado pela importância incomparável à
da baiana que ficou conhecida apenas por ter dado à luz dois filhos talentosos,
mas ele compartilhava com ela ao menos uma afinidade: a visão de mundo
extremamente humanista e sem afetações.
Quem
sabe não está aí o segredo da longevidade? Na surrada lista de atitudes para
atingirmos os cem anos (a saber: não fumar, não beber, praticar exercícios,
seguir uma dieta balanceada, manter um hobby, conviver mais com os amigos e
demais resoluções que, aposto, você pautou para 2013), talvez esteja na hora de
incluirmos os cuidados com nosso estado de espírito a fim de envelhecermos com
juventude na alma.
Morrer
aos 80, que não faz muito tempo parecia pra lá de razoável, está ganhando ares
de infanticídio. Dona Canô, Niemeyer e mais uma penca de centenários anônimos têm
mostrado que é possível esticar essa corda e seguir contribuindo para a
sociedade. O segredo?
Nem
tanto as regrinhas de manual, e sim a consciência de que gostar do que se faz,
posicionar-se frente às questões cotidianas, enxergar a beleza das coisas
prosaicas, se despreocupar diante do que não temos controle, investir nos
afetos verdadeiros, cercar-se de gente do bem, amar sem restrições, deixar a
vaidade de lado e valorizar aquilo que traz substância à nossa existência
formam um conjunto de medidas tão eficaz quanto apagar o cigarro ou comer mais
espinafre.
Em
tempos de balanço e planos para o futuro, fica a dica da dona Canô, em frase
dita por ela em seu último aniversário: “Viver é muito bom, mas saber viver é muito
melhor”.