quinta-feira, 27 de dezembro de 2012



27 de dezembro de 2012 | N° 17295
J. A. PINHEIRO MACHADO | (interino)

As sombras de uma batalha

Conheci Dostoievski em Xangri-lá, depois do almoço. É uma das tantas dívidas que o Ivan e eu temos com nosso pai: na base do centralismo democrático stalinista, ligeiramente tropicalizado, o pai nos impôs um programa obrigatório de leituras. Longe da cidade que é hoje, a Xangri-lá da nossa adolescência era um descampado, o Nordestão desenhando cômoros no areal, entre as poucas casas. Não havia muito o que fazer: depois do banho de mar, o almoço demorado e, a partir daquele dia, a tarde começava com duas horas de Dostoievski.

O livro escolhido para minha iniciação, nos dias de hoje, talvez provocasse a intervenção do Conselho Tutelar ou do Juizado da Infância e da Juventude: Crime e Castigo! Abri contrafeito o pesado volume encadernado em couro e, logo depois de ler os primeiros parágrafos, ainda recordo do impacto inesperado.

Anos passaram, e Jorge Luis Borges, na escuridão de sua cegueira, iluminaria, em duas frases, aquela minha perplexidade juvenil: “Como a descoberta do amor, como a descoberta do mar, a descoberta de Dostoievski marca uma data memorável de nossa vida.

Em geral, corresponde à adolescência; a maturidade busca e descobre escritores serenos”. Naquele dia, por momentos o Nordestão deixou de assobiar, o céu azul do azul lavado pela chuva, do verso de Paulo Mendes Campos, perdeu sua atração irresistível e o dia límpido e ensolarado lentamente foi substituído pela urgência da emoção nova e avassaladora daquela primeira leitura. Borges deve ter vivido algo parecido na juventude em Genebra: “Ler um livro de Dostoievski é penetrar em uma grande cidade, que desconhecemos, ou nas sombras de uma batalha”.

A história do jovem Raskolnikov é soberba, contada de forma magnífica. Estudante pobre, cheio de sonhos, divide os indivíduos entre ordinários e extraordinários e se impõe a missão de fazer algo realmente importante, ainda que seja uma violação às leis. Escolhe matar com violência uma velha agiota e, ao fugir, também assassina a irmã da vítima, que apareceu de surpresa e testemunhou o crime.

Rouba algumas joias, que acaba por descartar, atormentado pela culpa. O romance brilha no relato do remorso sem remédio que persegue o personagem como uma danação. Quando um inocente é preso, Raskolnikov assume o crime e é condenado. Diversas histórias paralelas reforçam o eixo principal da narrativa, entre elas, a relação do protagonista com Sônia, que o encoraja a confessar o crime.

Toda a miséria e toda a grandeza da condição humana transbordavam daquelas páginas. Mas nem todos se emocionaram tanto assim. No prefácio de uma antologia da literatura russa, Nabokov escreveu que não encontrou uma única página de Dostoievski digna de ser incluída. Borges recusou essa afronta com uma verdade salpicada de ironia: “Isso quer dizer que Dostoievski não deve ser julgado por páginas soltas e sim pela soma de páginas que compõe o livro”.