28
de dezembro de 2012 | N° 17296
CINTIA
MOSCOVICH
A força do
gesto
Filho
de imigrantes, nosso pai se esfalfava de trabalhar e recusava luxos – tinha
ojeriza a novo-riquismo. Mas havia uma coisa à qual não resistia: bons carros.
E era no Fairlane rabo-de-peixe ou nos Galaxies LTD que ele nos levava a
viajar, geralmente para o Uruguai, terra da mãe. A gente rodava horas
protegidos pela robustez do carro e pela promessa de pasculinas e dulce de
leche.
Numa
dessas viagens, eu estava dormindo no banco de trás, quando ouvi um estrondo,
um guincho de freada e logo a voz assustada do pai:
–
Acho que matei um cachorro.
Ele
saiu correndo do carro. Pelo vidro traseiro, a gente não via sinal de bicho
morto ou vivo. Nada no leito da estrada, muito menos nos matinhos laterais.
Intrigados, nossa única alternativa era seguir viagem. E por todo o trajeto o
pai foi se martirizando: o cachorro tinha vindo do nada e se metido na frente
do carro, nem tempo de frear, ele tinha matado o animal.
Meia
hora de luto adiante, ele parou para abastecer e todos descemos do carro. Foi
então que vimos: de baixo da carroceria, saía, se esgueirando, um cachorro. O
bicho bocejou, alongou as patas dianteiras, se sacudiu todo e, como se nada
fosse, se afastou a passo, vivinho da silva. O pai deu uma gaitada bonita:
decerto o animalzinho tinha se protegido na lataria do carro, que sorte, graças
a Deus. Ficamos tão aliviados com a proeza que parecia uma festa no posto de
gasolina.
Agora,
quando se aproxima a época de veraneio, eu me lembro do pai e dessa história –
porque vai começar a temporada infeliz na qual as pessoas, de férias,
abandonarão seus animais de estimação nas estradas. Os cachorrinhos, que nem
sabem trair, serão largados como se fossem estorvos: serão atropelados, causarão
acidentes, morrerão à míngua.
Muitos
desses que abandonarão seus bichinhos estarão com seus filhos como testemunhas.
Que exemplo dão pai e mãe que descartam uma vida? Qual é o sentido de colocar a
própria conveniência acima de qualquer outra coisa? Vamos combinar: quem não
respeita a vida de um animal dificilmente respeitará a vida de um humano. Na
falta de empatia com o sofrimento de um ser vivo, a maioria dos valores se
subverte, a estupidez começa a ditar as regras do convívio e as pessoas passam
a seguir uma moral torta e amalucada.
Peço
aos donos de animais de estimação que pensem, mas pensem muito, antes de
abandonar seus amigos de quatro patas. Quem tem a guarda de um animal é
responsável por suas condições de vida e sobretudo pelas condições de sua
morte. Àqueles que têm filhos e que não sabem o que fazer com os bichos nas
férias, peço que reflitam no exemplo que deixarão. Meu pai ensinou e eu nunca
mais esqueci: as palavras comovem, mas os exemplos arrastam.