09
de janeiro de 2014 | N° 17668
L. V. VERISSIMO | L.F. VERISSIMO
Desafiando a
sorte
Uma
pessoa que nasce pobre, num dos chiqueiros do mundo, com pouca perspectiva de
sobreviver, que dirá de melhorar de vida, tem todo o direito de pensar que a
sorte (ou Deus, ou que nome tenha o responsável pela sua sina) lhe foi cruel. E
de assumir sua própria biografia, já que o destino que lhe foi reservado de
nascença claramente não serve. Como um dos despossuídos da Terra, só tem duas
opções: resignação ou fuga. Fatalismo ou revolta. Aceitar ou rejeitar sua sina.
E literalmente desafiar a sua sorte.
Assim,
essas cenas que se veem, de barcos precários lotados de imigrantes ilegais da
África arriscando a vida para chegar à Europa, ou mexicanos sendo caçados na
fronteira ao tentar entrar ilegalmente nos Estados Unidos, entre outras imagens
de desumanidade e desespero, são cenas de uma tragédia recorrente e sem
solução, mas uma tragédia com mais significados do que os que aparecem.
Representam
graficamente, didaticamente, a desigualdade entre nações pobres e ricas, que
seria apenas outro fatalismo irredimível se a desigualdade não fosse
deliberada, cultivada por nações ricas que muitas vezes estão na origem
histórica da miséria dos pobres.
E
tem este outro significado, o de cada refugiado da sua sina representar um
indivíduo em revolta contra o acaso que determinou que vida ele teria. São
pessoas de posse da sua própria biografia, desafiando a ideia de que o destino
de cada um está preordenado, na geografia ou nos astros.
A
maioria dos que desafiam a sorte e conseguem chegar aonde queriam continua a
padecer. Transformam-se em problemas sociais no país de destino, sofrem com a
hostilidade e o racismo e a falta de oportunidades. Mas o importante é que
passaram pelas barreiras: a da sua origem na miséria e a barreira maior que
separa o mundo rico do mundo pobre.
Mesmo
os que não conseguiram ser mais do que vendedores de bolsas Vuitton
falsificadas na calçada, são símbolos de uma vitória. Já se disse da mistura e
da quantidade de raças que se veem na Inglaterra, por exemplo, que são os
filhos bastardos do império inglês, na metrópole para reclamar sua parte da
herança. O normal é que imigrantes legais ou ilegais, na Europa e nos Estados
Unidos, continuem deserdados. Mas pelo menos não é mais uma sina.