08 de agosto de 2015 | N° 18252
CLÁUDIA LAITANO
Fumaça preta
Entre os muitos mistérios jamais esclarecidos da trama de Lost (2004-2010), o monstro da fumaça preta era o mais sinistro e perturbador. Uma criatura etérea, onipresente, que se podia ver e ouvir, cheirar talvez, mas que não se sabia de onde vinha nem para onde ia. Chegava devagar, sinuosa, flanando no ar como uma serpente fantasma, antes de dar o bote, deixando suas vítimas sem qualquer possibilidade de reação a não ser torcer para que o exu aéreo as considerasse uma presa desprezível – ou que o fim trágico fosse apenas rápido e indolor.
Tenho pensado muito sobre a fumaça funesta de Lost nos últimos dias. Primeiro porque a coisa tá preta, segundo porque as ameaças parecem vir de todos os lados, limitando a capacidade de reação da maioria das pessoas a fazer pose de estátua enquanto a nuvem negra estaciona sobre nossas cabeças – em camadas sobrepostas de baixo-astral que se estendem da calçada em frente de casa à Praça dos Três Poderes.
Diante de uma crise dessas proporções, as reações podem ir do desespero ao sangue-frio, da ação enérgica ao imobilismo, da depressão ao baile da Ilha Fiscal, do espírito público ao paroquialismo mais estreito. Há gente tentando apagar o incêndio e gente atiçando a fogueira, gente sendo inconsequente por falta de informação e outros deliberada e calculadamente.
À atitude muitas vezes incompreensível de políticos e figuras públicas que parecem jogar a favor da fumaça preta, correspondem, na microesfera da vidinha miúda e das redes sociais, comportamentos igualmente inconsequentes ou mesquinhos. Como se a preocupação, a insegurança e o mal-estar generalizado causado pela sensação de instabilidade política e econômica justificassem todo tipo de insensatez e intolerância. Sofro, logo surto.
No limite, enfrentar uma crise sobre a qual não podemos agir apenas como indivíduos não é muito diferente de enfrentar uma crise pessoal, que depende unicamente da nossa capacidade de ação e reação para ser revertida (ou sobrevivida). OK, não podemos chamar o amigo Japão, em geral sensato e muito experiente, para desabafar, nem esperar que o cunhado EUA, sempre bem de vida, compre nosso artesanato para nos dar uma forcinha – não sem antes mencionar que o Haiti, coitado, esse, sim, está bem pior do que nós. Mas devemos manter (ou inventar) a compostura – como indivíduos e também como nação.
A crise, todas as crises, jogam luz alta sobre o caráter do sofrente e revelam sua verdadeira natureza. Quem se torna um crápula porque perdeu a mulher, o marido, o emprego, o negócio, a juventude (ou por medo de perder tudo isso) já era um crápula antes – apenas estava em modo repouso. Um país (ou Estado) que não consegue aproximar adversários em torno de uma pauta mínima comum de diálogo e espírito público tem problemas muito maiores do que a falta de dinheiro.
O que a fumaça preta exige da gente é coragem – e caráter.