quarta-feira, 4 de julho de 2018


04 DE JULHO DE 2018
PEDRO GONZAGA

OU


Ou fiquei distante das discussões, ou pouco se fala hoje de Charlie Chaplin, ou foi porque fiquei velho de repente, ou já não é comum alguém na vizinhança escutar Stevie Wonder ou Tim Maia, ou isso é apenas uma reclamação caduca, ou o hábito de resmungar recentemente adquirido por terem os amigos migrado para digitais estratosferas, 

ou tudo começou quando os horóscopos abandonaram as sortes do dia, ou quando as ruas deixaram de ser trafegáveis, ou talvez seja apenas um problema de digestão, ou uma dor de dente, ou a tosse que dura mais a cada inverno, 

ou afinal as infinitas latas de coca zero começam a cobrar seu preço, ou os infinitos volumes de poesia que se não prejudicam o corpo sobrecarregam a alma, ou aquele verso em que Bandeira diz ser a vida uma agitação feroz e sem finalidade, ou porque o trabalho nos tira o tempo do melhor amor, ou porque talvez tudo nasça do desconforto de estarmos aqui, ou algures, ou alegres, 

ou tristes, ou indiferentes, ou cansados em plena segunda-feira, ou animados quando todos dormem, ou otimistas depois de uns copos porque lembramos do Cartola cantarolando "a sorrir eu pretendo levar a vida", ou uma euforia que brota do expediente subitamente reduzido pelos jogos da copa do mundo, ou a vibração da próxima greve que não dará em nada, 

ou ame seu país, ou o deixe, ou o afogue nas águas de um rio qualquer, ou o esqueça numa esquina de Montevidéu, ou escreva uma crônica, ou agarre firme o corpo mais próximo, ou você não sente os abalos desta pedra girante, ou você não cuida que os pássaros se silenciam a cada estação, ou quem sabe tais figuras sejam apenas um exagero, ou um golpe retórico, ou um exercício de estilo, ou esta é uma pausa necessária para suavizar um pouco o horror, ou tentar estancar a perda de leitores que deve vir a galope, 

ou chegamos juntos aqui, ou você me abandonou em algum dos ous, ou prosseguiu, ou ficou a ler o que eu li tantas vezes antes para fazer o texto funcionar, ou ficou porque reconheceu o tom de uma voz que se esforça para se manter humana, ou porque no fundo sabemos que o verso ferino do Bandeira está certo, ou porque lutamos todos os dias para que ele esteja errado.

PEDRO GONZAGA