sábado, 7 de julho de 2018


07 DE JULHO DE 2018
SINGULAR

UMA FAMÍLIA ÀBEIRA DO PENHASCO


Passados 40 anos desde que saiu de casa e abraçou a civilização, a costureira Maribel Edira Klipel da Silva voltou, em dezembro do ano passado, a morar na cabana isolada em que viveu até pouco antes da maioridade. Ela se desvencilhou de comodidades como um chuveiro de água quente, uma geladeira movida a eletricidade e um fogão a gás. Passou a viver com a sensação de estar em suspenso no tempo. 

Durante o dia, recebe turistas na sala de estar da choupana de madeira erguida por seus pais há 73 anos, localizada no que hoje é o Parque Nacional de Aparados da Serra, em Cambará do Sul. À noite, enquanto quem mora nas cidades desliga os abajures, ela apaga a lamparina acesa a gás e adormece ao lado do marido a poucas dezenas de mestros do cânion do Itaimbezinho, penhasco de 720 metros de altura localizado na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina.

Em seus 57 anos de vida, Edira jamais viu a casa de madeira ter uma única lâmpada acesa com energia elétrica. Junto a nove irmãs e dois irmãos, cresceu correndo no meio de araucárias, troteando no lombo de cavalos e se banhando em cascatas de água límpida. Não se importava muito com os calçados grandes demais para o pé, comprados para durar bastante. As preocupações eram o frio que "engripava", as vacas bravas no caminho da escola e os pumas que atacavam ovelhas à noite.

- Vivi em Caxias do Sul durante 40 anos, criei dois filhos, fiquei desempregada e agora estou de volta. Era muito bom viver aqui (ao lado do cânion). A gente trabalhava, mas brincava muito, corria no mato, descia para o Itaimbezinho sem contar, porque o pai e a mãe não deixavam, por ser perigoso. Minha mãe puxava água no balde, carregava lenha no mato, fazia queijo com leite. E dizia que nunca passou trabalho - conta Edira, que divide a cama com uma colorida colcha de crochê ao lado do marido, Antonio Selomar Rodrigues da Silva, 64 anos.

Para chegar até ali, é preciso percorrer, desde o centro de Cambará do Sul, 18 quilômetros em estrada de chão. Uma vez no parque, deve-se costear a sede do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), percorrer a pé 1,5 quilômetro da Trilha do Vértice e, em vez de tomar a direita para avistar a Cachoeira das Andorinhas, pegar a esquerda.

No pátio, além de uma horta e uma grande araucária, uma placa apresenta o local aberto a visitação desde 2015: "Café do Vô Marçal e Artesanato da Vó Maria", em homenagem aos pais, Marçal e Maria Klipp. O local é cuidado por Edira e pelo marido, mas também pela cunhada, a artesã Loeni Borges Klippel (o sobrenome mudou por erro do cartório de registros), 64 anos, e a irmã adotiva, Mônica Rosane Mendes de Oliveira, 51.

Quando Marçal e Maria eram vivos, sua residência era ponto de encontro de tropeiros e viajantes que acampavam (prática permitida até a década de 1980). Tomados de surpresa por uma virada no tempo, um frio insuportável ou uma neblina impedindo que se enxergasse mais de um palmo de distância, todos os incautos eram acolhidos. O casal dava um jeito de abrigá-los, aquecê-los perto do fogão a lenha, inclui-los na roda de chimarrão. Se estavam com fome, preparava-se uma refeição. Hoje, os herdeiros mantêm a tradição de deixar as portas abertas e conservam a cabana tal como era antigamente. No fim de semana, recebem o reforço da filha de Loeni, Vanessa Borges Klippel, 32.

- A gente era pobre, mas sempre ajudava os viajantes. Se alguém batesse na porta e pedisse um pouso, um café ou um almoço, meus pais sempre davam - rememora Edira.

Zero Hora visitou o local em uma tarde de terça-feira e na manhã da quinta-feira seguinte. Parece que as sete décadas não passaram naquele ambiente. Não faria sentido um calendário colado na parede: nada ali remete aos tempos modernos. No banheiro, o chuveiro é um balde suspenso por uma roldana, e, no quarto, um andador de vime para bebês descansa no chão. Em outro cômodo, um tear e uma roca repousam em frente à janela de vidro.

O teto não tem forro e um pequeno fogão à lenha na sala é a única fonte de calor. O que é perecível se esconde em uma caixa de isopor e, no galpão dos fundos, buracos denunciam vazios onde foi levantado fogo de chão. No pátio, seriemas caminham desengonçadas de um lado para o outro.

Quem quer se recompor das trilhas no cânion pode pedir pastel de pinhão, suco de laranja e almoço campeiro. Ou, ainda, comprar roupas de lã artesanal. A iniciativa de transformar a antiga residência em casa para turistas foi de Loeni, esposa do construtor Eraldo Kippel, 60 anos. Loi, como é conhecida, se uniu à família há quatro décadas e chama os sogros de vô e de vó. Habilíssima com as mãos, aprendeu com Maria a lida na roca e no tear, trançando a lã em cachecóis, toucas e palas.

- Hoje sigo os passos da vó Maria, fazendo o que ela fazia. O espírito dos dois está vivo aqui. Comecei a cuidar da casa para a história da família não se perder e para ter um retorno financeiro também - diz a artesã.

A cabana foi construída em 1945, antes da implementação do Parque Nacional de Aparados da Serra (o que ocorreu em 1959). Há situações semelhantes, de residências erguidas em áreas depois transformadas em parques de preservação, em todo o país - invariavelmente, tornados casos de disputas judiciais. Como tropeiro, Marçal transitava pelos três Estados da Região Sul em viagens nas quais estirava peças de charque e queijo e garrafas de cachaça no lombo de burros. Cavalgava por dias para obter, em troca, açúcar, tecidos para fabricação de roupas, arroz e calçados. Aos 24 anos, em uma das andanças, se apaixonou pelo "peral" (como muitos chamam os cânions).

Tábua sobre tábua, Marçal, Maria e um compadre construíram com as próprias mãos a casa e o galpão nos fundos. A família festejou ali os casamentos dos filhos e os 65 anos de comunhão do casal. Sob o mesmo piso de madeira, nasceram os 10 filhos biológicos com auxílio de parteira.

As exceções foram dois bebês - Eroni e Eraldo -, que Maria deu à luz sozinha. Marçal até saiu cavalgando para buscar ajuda, mas a distância da casa em relação à zona urbana impediu que voltasse a tempo. Sozinha, nas duas ocasiões, a mulher cortou à faca o cordão umbilical.

Como quem se queixa da grama alta no quintal de casa, Marçal por vezes reclamava da neblina típica da região, que até hoje azeda o dia de turistas. Costumava dizer aos filhos:

- Um dia vou tapar esses perais para acabar com essa umidade.

MARCEL HARTMANN