08 de novembro de 2016 | N° 18681
CARPINEJAR
Cabeça de prego
Na minha infância, ninguém usava furadeira e tarraxas. Era uma luta mano a mano com a parede. Martelo e parede, mais nada. Ganhava-se a disputa no muque e na técnica.
Você precisava conhecer exatamente onde morava. Tínhamos a planta da casa no mapa do corpo. Sabíamos onde estavam as vigas das paredes – as partes mais duras do concreto – e os encanamentos – as partes mais frágeis da residência. Cuidávamos para não martelar à toa.
Depois de 10 estocadas, se o prego não entrasse, você já devia se considerar derrotado pela parede. Vacilou o lugar da instalação do quadro ou do arranjo de decoração.
Não teria como atravessá-la mais. Seria engrossar o buraco com o orgulho ferido. Correto esquecer, recuar, fechar o estrago com o reboco e partir para outro trecho.
Reinava uma dignidade na ciência doméstica e um respeito diante dos limites da vida.
Lembro que nenhum prego era desperdiçado, mesmo torto e vencido, durante o meu tempo de menino. Por mais achatado e acabado que estivesse, não iria para o lixo, efeitos ainda da carência de aço da II Guerra Mundial.
Prego custava caro. Sua cabeça valia o resgate. Não se podia dispensá-lo.
Os pais não eliminavam os pregos fracassados. No porão, mantinham uma ferragem de guerreiros feridos, um hospital de combatentes, de vários tamanhos, de 6x6, empregados em marcenaria e mobiliário, a 26x84, colocados em mata-burros e porteiras.
Prateleiras e prateleiras com potes de Nescau, onde repousavam pregos com traumatismo craniano, pregos esmagados para o lado direito, pregos dobrados para o lado esquerdo, pregos com lordose.
O prego entrava no purgatório emocional dos objetos, alcançava uma terapêutica repescagem. Mais em conta endireitá-los, um dia, do que gastar uma fortuna com novos.
A economia do material extrapolava o plano prático, mas atingia o espiritual, trazia uma forma de enxergar o mundo.
A esperança dominava a família. Quando algo dava errado, acreditava-se no conserto. Com essa atitude de preservar as peças imperfeitas, admitíamos também as nossas emoções falhas, as nossas lembranças inexatas, as nossas gafes naturais.
Errar não significava perder, mas uma possibilidade de caprichar na próxima vez. Errar não significava ser desclassificado, mas uma chance de se desculpar e voltar melhor.
Assim como quando eu errava, recebia um castigo e ficava no escuro até reencontrar a minha forma. Naquele tempo, toda parede era uma porta para o perdão.